Um pássaro me chama, todo dia.
Ele me chama para fora de mim, para o céu azul, para os ramos das árvores, para o sol.
Azulão quer, com seu chamado rouco ou com seu canto limpo, que eu vá para a infância e o contemple: soberbo e imponente.
Bicudo quer mesmo que eu fique tonto com suas variações melódicas de notas agudas embrulhadas em fundo grave.
Bigodinho só quer chacoalhar dentro do papo milhares de bolinhas de gude minúsculas e sonoras: chacoalha com força por uns segundos, para, aguarda as bolinhas silenciarem, dá um chacoalhãozinho e chacoalha forte tudo de novo, sem se mover no ramo do paineira da Farmácia. Em março ele some, não para onde. Só volta em outubro.
Bonito, gaturamo ou tietê, não sei se assobia, se chama, se canta: um fio de ouro de canto fino, no alto do pé de fruta de conde.
Canário da terra chama, chama e estala. Estala e dispara no canto sincopado. Quer minha atenção, quer que eu pare e fique olhando a sua performance lá no mais alto do coqueiro da Igreja. Quer minha atenção para seus amarelos e laranjas no alto dos pés de caqui perto da escola.
Canário do reino, humilde e virtuose, não se impõe: delicado, apenas oferece o que há de mais fino e ensaiado nas suas sílabas em u, em i, nas suas raras consoantes: flauteia, abaixa, trina e afinal gorjeia.
Coleirinha não liga para linhagens nobres e mostra, na flor de capim em que se balança, no cafezal atrás da Vila Jacarandá, o que de melhor o povo pobre pode produzir em canto limpo e nostálgico.
Corruíra onde está? O canto foi aqui mas a pequena bolinha de penas marrons já está naquele arbusto. Cantou ali mas já está entrando no buraquinho da parede, levando um gordo inseto para os filhotinhos insistentes, ocultos. Cantou grossinho, com sete assobios emendados, mas já não está lá, agora estala rascante, é chamado agora, não é mais canto.
Curió canta mais alto que o barulhão da Cachoeira dos Búfalos e impõe o chamado e o canto desabado, pedrinhas sonoras que despencam do alto e não há quem detenha e quando eu penso que chegaram aqui embaixo estão de novo despejando lá de cima.
João de barro só canta em glória e deboche, vem mostrar: "Não tenho medo de vocês, vou fazer minha casa no pau da sua cerca, no poste de sua eletricidade e para trazer o barro e amassar não vou parar de cantar. Eu e a minha companheira. Só paro de cantar para fazer dueto de gargalhadas com ela. Marrons como o nosso barro, nem voamos quando você chega perto".
Pardais vêm de bando, piando forte, querem provar as duas coisas: que não podem ser tocados porque são filhos do Santo de Assis, e podem piar como se cantassem. Querem no volume compensar a desafinação e a falta de variedade dos acordes. Bagunçando no beiral da tulha.
Periquito passa gritando, pelo alto, longe dos telhados, chamam uns aos outros à toa, pra quê, estão se vendo, estão próximos uns dos outros. Chamam a mim, que os contemplo de olhos bobos, daqui do chão... Os verdes tuins.
Pintassilgo chama com um pio fino e rouco, despretensioso. Quando a gente pensa que é só isto, ele tira a flautinha e deixa a gente bobo com as sequências intermináveis. Do alto do cedro do Chalé, desce buscando a flor do picão.
Sabiá espera o momento em que todos já cantaram e ficaram quietos. Então ensaia os chamados, como se não soubesse a melodia toda. Espera os amadores se afastarem (vai ficar só nisto?) e então, para mim, que fiquei de pescoço esticado para poder vê-lo no meio dos últimos ramos dos eucaliptos da frente da escola, para mim ele trouxe todas as partituras e vai assim, com variações, até o sol acabar mesmo de se esconder.
Sanhaço passa ligeiro, um avião de caça a jato, no voo de flecha rápido dança para cima e para baixo, despreza a linha reta, as curvas o levam direto ao mamão, come e canta, o assobio é forçado, minha boa vontade percebe melodia no gorjeio arrastado, metálico. Vem a companheira, chiam, discutem os melhores pedaços amarelos. Já foram de repente, no vôo balançado para cima e para baixo já chegaram no pé de amora.
Tico-tico tapeia todos nós, finge de pardal leigo em canto, mas chama a fêmea e o chamado já é uma nota límpida, redondinha. Agora você vai ver, pulou para cima do mourão da cerca velha, ergueu o topetinho, agora aguenta a melodia nobre, enganou vocês, não é? Do povo também saem os talentos geniais.
Tié sangue misterioso não se deixa ver a ponto de posar para foto.
Surge de dentro da mata, onde estava chamando com duas notas, a primeira aguda e provocante, a segunda uma oitava abaixo. O chamado sobe e desce como um gráfico de visor de batimentos cardíacos. Não vá você entrar na mata, bobagem, aguarde: tem fruta aqui no pé. Veio, está aí, peitão vermelho, asas pretas. Tudo muito vermelho, tudo muito preto, tudo muito bem definido. Olhou? Já foi, seu bobo. Aparece, você contempla paralisado a ausência posterior. Não é uma ave que está. É um segredo vermelho e negro que esteve, que estava, agora já está chamando dentro do mato: escuta de novo.
Tiziu, a bolinha preta parada no topo do mourão no meio do pasto do Haras. Ou num capim mais alto. Mas nada é muito alto na planície. Ele tem que pular para ver em volta. Pula e chia e cai no mesmo lugar. Pula e chia duas notas rascantes, pronunciando o próprio nome. O ti quando sobe, o ziu na descida. O ziu é mais um jiu, sai meio raspado, como um jriu... Parece que essa segunda parte ele aprendeu ouvindo o chilrear das andorinhas. Mas ele não liga, continua pulando e repetindo o nome que lhe deram.
Pássaro-preto é o senhor dos altos eucaliptos, o canto mais alegre e gozador, debochado, superior: assobia, assobia em duas notas repetidas, repetidas e desaba a dar os assobios encadeados, são os assobios mais límpidos e lisos, para quem tinha começado com chamados que pareciam mais aspirados que soprados. Mas o final é sempre deprimido, como uma gargalhada irônica em voz grossa, que vai se sumindo e termina numa exclamação de zanga.
Mas é você que me chama de verdade há longos anos, Bem-te-vi!
Do alto das antenas de TV, quase não vejo mais você encarapitado nas árvores. Vejo você num momento assumindo o grotesco de dar corridinhas pelo chão do asfalto, vindo beliscar pipocas e bichinhos, como um pombo qualquer. Mas em seguida você assume a nobreza antiga dos grandes coralistas e a disputa dos seus companheiros me empolga: quem me viu, quem me viu, bem, te vi, te vi, e gargalhadas agudas em uníssono encerram a discussão.
Eu ouço vocês, sei que me estão chamando, amigos passarinhos. Todo dia eu falo: Ah lá! estão me chamando! Os passarinhos nos chamam todo o dia. Escute! Escute os passarinhos! Eles são os pequenos anjos que Deus deixou na terra para nos encantar...
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Texto de PAULO TARCIZIO DA SILVA MARCONDES
Querido professor!
ResponderExcluirpassei para dar uma olhadela...
os textos estão belíssimos...
volto para apreciar com mais apuro!
ah, a foto do Blog, um primor de se ver... que convite, hein?!!
PARABÉNS!!!!!!!!!!!!
Pequenos milagres de Deus. Lindos pássaros que inspiram belos poemas.
ResponderExcluirOs cantos e as belas penas dos pássaros, na virtuosa pena do autor.
ResponderExcluirmuito bom , cade a coleirinha?
ResponderExcluirSencacional e emocionante, me levou ao paraiso mágico da querida e eterna Coruputuba!! Parabéns Poeta, minha mente e meu coração ficaram muito feliz!! Gratidão Professor!!
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