O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

O álbum de figurinhas da Leiteria

 

O Largo, com o Bar, a Leiteria, o Depósito do Clube e a Barbearia. 

Em cima, o Clube da Industrial.

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Suli, Deleu, Bellini e Riberto; Dias e Jurandir, Faustino, Pagão, Prado, Benê e Canhoteiro. O que era isto? 

Era a escalação do São Paulo Futebol Clube em 1963. Estou lembrando disto por causa do álbum de figurinhas que vendia na leiteria. Sim! A leiteria da Dona Alice e do Seu Emer Marangoni também era revistaria. Ali a gente comprava “O Pato Donald” toda terça e, uma vez por mês, o “Mickey”. De vez em quando, o irmão do Araújo comprava a “Epopeia” e, depois que lia, emprestava para nós. Não me esqueço da fabulosa “Historinhas Semanais”. Um encanto! “Historinhas Semanais” tinha uma porção de segredos. Janelinhas e portinhas que se abriam nas páginas, para você ver o que tinha lá dentro...

Dona Alice tinha uma palavra boa para cada um. Quando eu chegava no balcão para pegar o leite, ela sempre cumprimentava. Um dia ela me falou:

“Olha, esse litro seu está sujo por dentro. Aposto que você já tentou lavar e não conseguiu.”

Eu só falei:

“É!”, bem sem jeito.

Ela continuou:

“Essa sujeira dentro da garrafa é do leite mesmo, que a gordura dele gruda. Quando você for lavar a garrafa, põe um punhado de arroz cru junto com a água e um pedacinho de sabão. Você chacoalha bem, o arroz vai limpar tudo!”

Realmente, comecei a fazer isto e ficou uma beleza a garrafa. Ensinei para o pessoal de casa.

Mas, no meio das revistas, tinha uma coisa bem perigosa para fazer a gente gastar o dinheirinho da matinê. Eram os álbuns de figurinha.

A primeira metade do álbum só tinha times de futebol. Por isso que eu falei lá em cima os nomes dos jogadores do São Paulo. Mas tinha todos os times principais, de São Paulo e do Rio. Vou falar só os nomes dos goleiros: do Corinthians era o Cabeção; do Guarani era o Dimas; do Palmeiras era o Valdir; da Portuguesa era o Orlando; do Santos era o Gilmar etc.

Querem saber o time do Santos na época: Gilmar, Lima, Haroldo e Geraldino; Mengálvio, Zito e Calvet; Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe.

Estou me distraindo na conversa. Estava contando para vocês sobre o álbum de figurinhas. Então, metade era com times de futebol. A outra metade, cada página era uma tentação: uma TV, uma geladeira, um liquidificador, uma batedeira de bolo, um rádio, uma vitrola, um jogo de copa, um fogão a gás, uma panela de pressão  um monte de coisa bonita. Se a gente preenchesse a página, ganhava o prêmio.

Dificílimo. Tinha que completar a página com todas as figurinhas, doze em cada folha. As páginas dos times também tinha que preencher para ganhar algum prêmio. Ganharia uma bola de capotão legítima, oficial, número cinco. Ou uma bicicleta. Meu Deus, aquilo era um sonho louco!

Vários prêmios já ficavam na leiteria, lá em cima das prateleiras. Tinha gente que, diziam, já tinha ganhado. Dum dia para o outro, sumia da leiteria uma bola, um dia sumiu um rádio, outro dia uma boneca. Aí diziam que foi um moleque lá da Vila Maria que ganhou. Outros falavam que foi alguém da Figueira, ninguém sabia muito certo.

Eu e o Bosco estávamos colecionando as figurinhas. Todo semana a gente comprava os envelopes com as figurinhas e o prazer era colar nas páginas. Depois, a gente trocava as repetidas com nossos colegas. E chegamos a um ponto em que todas as folhas estavam quase completas. Faltavam duas figurinhas em cada folha. Pessoas diziam que em cada região do estado havia figurinhas muito difíceis, mas que eram facinhas em outros lugares. Assim: diziam que lá em Ribeirão Preto essas que faltam são facinhas, facinhas.

E daí? O que que a gente ia fazer? Ia pegar o bonde do Seu Ciro Valentini para ir lá em Ribeirão Preto? Imagina só.

Daí, um dia, a mãe viu eu e o Bosco, os dois bem jururus. Ela perguntou o que era, nós mostramos o albinho. Faltando duas figurinhas em cada página.

A nossa mãe às vezes parece que tinha um sonho de felicidade, que tudo ia dar certo, sempre ia dar certo. Ela não se conformou com a nossa tristeza. Perguntou como é que fazia nesse caso, que já estava quase tudo cheio e a gente ainda não tinha ganhado nada. E não sei qual de nós dois que foi bocudo de colocar ideia na cabeça da mãe. A mãe estava parecendo uma criança grande, uma meninona capaz de acreditar em tudo.

Um de nós dois falou:

“Só se comprasse uma caixinha inteira.”

Mãe não deixou o assunto morrer. Já falou em cima:

 “Quanto que custa?”.

Fiquei até com medo desse pensamento, mas a mãe nos animou e falamos:

“Cinquenta cruzeiros a caixa de cinquenta envelopinho”.

Mãe ficou de pé e mandou:

“Pega o dinheiro, tá na terrina da cristaleira”.

“Mas mãe, é da conta do Armazém!”.

“Ora, vai valer muito mais se a gente ganhar um prêmio! Vão lá, traz uma caixa de figurinha!”

Fomos eu e meu irmão Bosquinho. Aconteceu tudo. Compramos uma caixa de figurinhas, cinquenta cruzeiros. Seu Emer fez uma brincadeira, disse que queria ver a gente de bicicleta nova. Saímos ligeiros da leiteria, não lembro do caminho de volta para casa, sei que sentamos no chão do quarto, a mãe na cama, vamos abrindo os pacotes, só figurinha repetida, só figurinha repetida, faltavam uns três pacotinhos, fomos abrindo já meio sem fala nós três, e acabou o último pacotinho, só figurinha repetida...

O que mamãe falou naquele dia, naquela hora? Acho que alguma coisa assim: Não faz mal... Deus ajuda... Não tem importância... Meus filhos...

Mas a cara dela ficou meio assustada, achei que estava meio branca. Deu dó, mas deu muito dó mesmo da nossa mãe.

Eu e o Bosco ficamos com uma espécie de vergonha. Mas ninguém criticou. Depois eu fui entendendo que aquele foi o grande lance da nossa mãe. Não deu certo, mas ela teve a coragem de arriscar. Foi mais corajosa do que eu e o Bosco.

E a conta do armazém da Cooperativa acabou sendo paga do mesmo jeito.


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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Foto: Prof. João San Martin

domingo, 10 de setembro de 2023

A Vó de Pinda

 

Casa da Vó de Pinda, na Rua Gregório Costa. 
Do tempo antigo só sobrou essa casa na Gregório Costa. 
A entrada era pelo portãozinho no lado esquerdo.


Meu pai, o Professor Francisco, era filho de Francisco Carlos Marcondes e Maria Clara Fonseca Marcondes.

Infância de meu pai foi na Fazenda Itapecirica, em Taubaté. Adolescência dele foi estudando no Seminário Diocesano de Taubaté. Deu aulas, mais tarde, no colégio desse mesmo seminário.

Depois, quando já estava casado com minha mãe, ele trabalhou como operário na tecelagem da CTI, Companhia Taubaté Industrial, onde ainda existe aquele enorme relógio que dá para ver da Dutra.

Não conheci o meu avô paterno, Francisco Carlos Marcondes, o Nhonhô Marcondes. Era dono de um comércio em Taubaté, no Bairro de Itapecirica. Ele faleceu vários anos antes de eu nascer. Mas conheci a minha avó paterna, Maria Clara Fonseca Marcondes. Era a "Vó de Pinda", para diferenciar da nossa avó materna que morava conosco. A vó de Pinda tinha se mudado de Taubaté para Pinda.

Mudou-se para Pinda para acompanhar o seu filho caçula, o Jota Marcondes, menino ainda, que tinha vindo trabalhar na farmácia do Seu Arlindo Paim (onde hoje fica a Churrascaria Gramado, perto do Largo do Cruzeiro).

Além do meu pai, Professor Francisco, e do Jota Marcondes, a Vó de Pinda tinha também os seguintes filhos, todos nascidos e criados em Taubaté: Geraldo, Maria, Luís, Nazaré (Dala), e Aparecida.

Tio Geraldo morreu moço, de doença. Grande tristeza foi o meu Tio Luís, que morava em São Paulo e trabalhava na Light. Foi desligar uma chave de alta tensão, que ele não sabia que estava energizada. Foi jogado longe. Agonizou no hospital quase vinte dias.

Tia Maria foi casada com Seu Durvalino e era mãe de minhas primas Janda e Heleninha. Morou muitos anos numa casa em frente ao Rodrigo Romeiro.

Tia Cida foi morar em Coruputuba e, depois, na Vila São Benedito. Era casada com o Seu Sebastião Enfermeiro e era mãe do meu primo Valério.

A Vó de Pinda morava na Rua Gregório Costa (rua que começa no largo de São José e vai em direção à estão de trem). A casa onde ela morou ainda está em pé.

Eu tinha uns cinco ou seis anos quando fui com a mãe visitar a Vó de Pinda. O que ficou na minha lembrança foi a escuridão da casa. Não tinha tantas janelas como a nossa casa de Coruputuba, sempre arejada e clara.

Na cozinha, um fogão a lenha, com os tições crepitando. Com uma chaleira esquentando e, no canto, um bule bonito, meio velho, era um bule de esmalte verde com flores azuis. Nós falávamos na época: era um bule de ágata.

As paredes pretas de fuligem, o telhado enegricido de picumã, a iluminação natural entrava por uma telha de vidro lá em cima. A vó estava passando roupa com um ferro grandão e pesado. Ela puxou umas brasas do fogão, encheu o ferro e ficou balançando, para manter as brasas acesas.

A chaleira ferveu, ela passou café no coador de pano, tomei o café gúti-gúti, numa caneca de folha e depois me sentei na soleira da porta da cozinha, mastigando um pedaço de pão.

Alguém pode estranhar eu dizer que tomei café gúti-gúti. Isto quer dizer, beber de uma vez toda a caneca de café para só depois comer o pão. As crianças faziam assim. Só os adultos que ficavam dando uma dentada no pão e bicando gole de café.

Comi o pão e falei pra mãe: “Mãe, tô precisando”. A vó escutou e mandou eu ir na casinha, no fundo do quintal. Antigamente falavam assim: casinha, em vez de falar banheiro. Na "casinha", a privada era de buraco.

Fui lá fazer o que eu tinha que fazer. O quintal, saindo da porta da cozinha, ia baixando, todas as casas da rua eram mais altas do que os quintais. Vejam que a Rua Gregório Costa fica num tope de morro, os quintais vão descendo para o fundo do quarteirão.

O quintal tinha uma horta pequena, cercada de taquara por causa das galinhas. Uma ou outra bananeira e nas beiradas crescia capim e uns pés de mamona.

No fim do quintal, lá embaixo, uma cerca separava do bambuzal da beira do ribeirão. Hoje eu sei que o ribeirão que passava ali era o córrego do Tabaú. Bom, ainda passa, mas passa canalizado, debaixo da Alfredo Valentini e da Coronel José Francisco.

Papai não foi nessa visita que fizemos para a Vó de Pinda. Não dava para sair todo mundo de casa, e ele dava aula de tarde.

Talvez em 1960... não sei. A vó de Pinda mudou para Lorena, foi morar lá com a Tia Dala (Maria Nazaré), que trabalhava num hotel. Fui lá uma vez, com minha mãe (nosso pai já tinha falecido). Fomos na casa da vó, com um quintalzinho na frente da casa. Ela tinha uma galinha que obedecia tudo que ela mandava: Vem beber água!, vai ciscar no quintal!, vem pra dentro! A galinha dormia dentro de casa. Parecia um cachorrinho obediente, a vó ficava conversando com ela.

Depois fomos ver a Tia Dala no hotel. Uma escada alta, alta... degraus de madeira envernizada.

Quando a vó de Pinda - que já era Vó de Lorena - ficou doente, minha mãe foi passar algumas semanas com ela, para tomar conta, dar os remédios, conversar. A nossa avó paterna, Dona Maria Clara Fonseca Marcondes, morreu em 1963.

Minha mãe não foi ao enterro em Lorena, mas o Zaga foi. Ele já era mocinho, tinha dezoito anos, estava no Científico.

Depois ele me contou da casa, que eu já tinha conhecido antes dele. E me contou uma coisa que fiquei com dó. A galinha mansa não queria ir para o quintal, quis ficar no velório, ficava rodando pela sala, procurando...procurando... acho que querendo escutar aquela voz que ela tanto obedecia...