O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 21 de junho de 2020

INDEFESOS


De tanto ler e ouvir histórias de ilhas perdidas e recantos secretos na mata, os dois meninos inventaram de fugir de casa de noite e ir morar no bambuzal. Nem tinham ideia da profundidade do bambuzal. Passavam por ali todo dia, para ir buscar leite na fazenda.

Lugar bonito. Uma estrada sobre o aterro que ampara a Lagoa. Do outro lado, um bambuzal que ampara o aterro. Uns dez metros de largura, essa plantação de bambus, segurando o declive. Para os meninos, parecia uma selva.

Oito anos e seis anos. Oito anos era o Zaga. Eu, tinha seis anos e era bem miúdo. Não havia motivo nenhum para fugir de casa. E nunca faríamos isto. Sair na rua à noite! E onde íamos morar? Tudo fantasia, para incrementar as conversas noturnas, como ia ser emocionante.

Começamos, porém, a tomar providências, como se fosse tudo de verdade. Ajuntamos tábuas, umas duas, alguns pregos tortos e enferrujados -- mas nós nem sabíamos manejar um martelo!. Cada um queria fazer mais bonito. Olha, guardei esse pedaço de pão do café de hoje! Ah, e eu apanhei estas ameixas, meio verdes, para a gente levar.

Isso podia prosseguir por meses, até que perdesse a graça e fôssemos inventar outros planos, como construir um avião de tábua, por exemplo. Mas eram oito irmãos. Como controlar esse universo? Alguém brigou com alguém que resolveu contar alguma coisa para a mãe. Em represália, alguém resolveu contar para alguém, que contou para a mãe que dois dos meninos estavam para fugir de casa para ir morar no bambuzal.

A mãe contou para o pai.

Podia tudo acabar em gargalhadas. Podiam os meninos de oito e seis anos serem chamados aos colos adultos, podiam ser alvo de pilhéria (e as onças?), e o assunto acabava.

Mas o pai tinha sido educado em seminários (Provérbios 13,24: “Quem poupa a vara, odeia o seu filho; quem o ama, corrige-o prontamente.”). A mãe foi ao pé de amora, colheu uma linda vara e a foi depenando das folhas, para açoitar o Zaga. O pai achou que era o momento sagrado das cintadas no menino menor, eu. Um fisguelinho de seis anos, que nem bunda tinha. Desce as calças. E na bundinha pelada do molequinho de seis anos começaram a cantar as cintadas, aplicadas com o cinto dobrado.

Mas naquele dia foi diferente. Não sei dizer como foi que resolvi, mas resolvi:  Não vou chorar nem gritar, eu não fiz nada para apanhar. E comecei a contar as cintadas que levava. Estava no primeiro ano. Sabia contar. Fui contando alto, gritado, um, dois, três, quatro... nenhuma lágrima. Os irmãos rodearam, na varandinha do tanque. A vó veio ver. A mãe também veio ver, já tinha castigado o Zaga. Mas aquilo era muito esquisito. Um menino pequeno apanhando sem chorar e ainda contando em voz alta as pancadas que levava. E falando errado, ainda tinha a língua presa, não sabia falar o “r” intercalado, deve ter saído assim, um, dois, teis, quato... 

E de repente o pai largou de mim, levantou-se, parecia sentir-se mal. Foi para dentro, arrumando o cinto, fechou-se no quarto. Os irmãos vieram ver as marcas da surra (“Deixa eu ver as bolacha!”), mas eu não quis mostrar não. Levantei as calças, estava com vergonha. Estava espantado. Tinha descoberto que se eu não chorasse parece que a surra parava.

Não se falou mais no assunto. Eu já tinha levado outras surras do pai e da mãe. Não lembro direito, mas acho que depois disto, o pai não bateu mais nas crianças. Em mim ele não bateu mais.

Quase três anos depois, o pai foi internado na Santa Casa. Estava doente do coração. Levado pelo Carlinhos, meu irmão primogênito, eu fui visitá-lo. Não queria ir, não sabia o que falar. Ele estava deitado, me abraçou, quis me beijar, a barba mal feita me cutucou, respondi alguma coisa sobre a escola, provas... Saímos logo. Eu estava aflito. Uma semana depois ele morreu, de enfarte.

Trinta anos depois, acordei de noite com uns barulhinhos. Adivinhei. Fui ao quarto da Simone, quatro anos. Ela estava arrumando roupinhas na mochila, tinha pegado o ursinho. Quando me viu, sentou-se na cama. Procurei ser doce na voz e no olhar, falando bem baixo: Filhinha, você estava fugindo de casa? É por que a gente tirou a chupeta de você?

Ela fez que sim, me abraçou e ficamos chorando juntos. Conversei com ela, sobre esse negócio de chupeta, dentição, essas estórias. Ela estava cansada, não tinha dormido, arrumando sua mudancinha. Depois foi sossegando, deitou, ficamos abraçados. E ela dormiu. Fiquei olhando a menininha morena, pensei: Meu amor. Pensei mais: É pecado bater numa criança. É um bichinho que Deus colocou nos braços da gente, para a gente cuidar, cuidar.

Hoje, lembro das duas coisas juntas. Meu pai me batendo com raiva e sem motivo. Eu querendo consolar uma menininha de quatro anos que estava pensando em fugir de casa.

Aí eu fico com dó de todo mundo. Com dó do menininho que eu era, que tinha seis anos mas nem sabia falar direito, que ainda mijava na cama, mas, sem ter feito nada de errado, apanhou duramente de um homem muito forte, que bateu no seu corpinho descarnado, quase osso, bateu com o cinto de couro, dobrado.

Da Simone eu não fico mais com dó, porque Deus foi generoso comigo e me deu tempo de contar para ela as minhas angústias e ela também foi muito compreensiva e me consolou, como se fosse eu a criança espantada.

Fico com dó do Zaga, que apanhou com vara de amora. Dói muito, quase corta. E penso. As maiores dores que sentimos, desde a infância, nos são proporcionadas pelas pessoas que mais amamos.

No meio de tanto dó, me brota também uma admiração pelo menininho que eu fui, me dá um orgulho pelo molequinho que, sem chorar nem pedir socorro, descobriu sozinho que tinha poder para brecar a investida de um homem grande.

Mas então me lembro que ele era um homem bom, que pegava a gente no colo quando vinha um cachorro bravo. Então eu sinto dó desse homem forte, que morreu tão depressa, aos quarenta e três anos.  Dó, porque, na cama do hospital, em sua última semana de vida, queria me abraçar, e eu escapei do seu abraço...

===============================
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

quinta-feira, 4 de junho de 2020

A TELEVISÃO EM CORUPUTUBA



Primeiro, a gente sabia que tinha televisão no Chalé. Mas isto era fora do nosso alcance. A primeira antena de tv que pudemos ver -- bem no alto de uma torre -- foi na casa do Seu Fonseca. José Manuel da Fonseca, o Pai. Mas ali ninguém entrava. A gente só podia mesmo ver era a antena, enquanto aguardava na fila para pegar leite na Fazenda.

Mas então o Seu Enéas comprou televisão! Que alegria! Alguém da nossa rua tinha televisão! Lembrando, o Seu Enéas era irmão do Seu Alcindo, que era o "Prefeito" de Coruputuba. Seu Enéas era casado com Dona Sinhá. Seus filhos eram a Dagmar, o Valdemar e a Maria Amélia.

Seu Enéas - agora entendemos - era um Homem Bom. A criançada da rua começou a lotar a calçada, para ver a Televisão pela janela. Mas não dava muito certo, entre a tela e a janela havia o jardinzinho. Então o Seu Enéas deixava a gente entrar no jardinzinho para ficar de nariz colado na vidraça, vendo aquelas imagens em preto e branco, uma luz azulada...

Depois de um tempo, o Seu Enéas já deixava a gente entrar na sala. A porta ficava escancarada, quem chegasse entrava e ia sentando no sofá. Se já estivesse lotado, a gente sentava no chão. E ficava vendo: Rin-Tim-Tim, Bonanza, O Homem de Virgínia, O Fugitivo, I love Lucy... Eu adorava as propagandas. Tinha a propaganda das Cestas de Natal Amaral: "Acaba de chegar / no meu lar / a cesta de natal / Amaral / Bom Natal / Bom Natal!" E a dos Cobertores Parayba: "Já é hora de dormir / não espere mamãe mandar / um bom sono pra você / e um alegre despertar"...

Dona Sinhá quase não falava com a gente. Parecia que a gente estava incomodando.. Nossa, vejam o que eu disse! É CLARO QUE A GENTE INCOMODAVA MUITO! Apesar que a gente ficava quase quieto. A não ser quando a coisa ficava muito engraçada. Um dia o canal saiu do ar e alguém falou: A televisão saiu do vento...

Canal? era só a TV Tupi, canal 4, e a TV Rio, Canal 13. Este canal então fazia um barulhão, um ronco feio, principalmente quando a imagem tinha muita área branca. 
Mas a Dona Sinhá, que eu achava com ar de brava, não era brava não. Era um pessoa muito boa. Porque um dia, a sala lotada de criançada da vizinhança, ela foi à cozinha e preparou uma jarra de limonada gelada (ela foi a primeira da rua a ter geladeira em casa).

Aquele gesto, de trazer limonada para aquele monte de crianças! Aquele foi o primeiro gesto que eu presenciei de cortesia de adulto para crianças.
Seu Enéas, Dona Sinhá! Vocês estão no Paraíso Celeste, muito merecidamente.

Minha vovó Ana Emília só foi ver uma TV quando finalmente nós compramos. Ela ficava vendo os programas (sem parar de manusear o terço...) e um dia eu perguntei a ela se a TV realmente era do jeito que ela pensava que era antes de conhecer.
Então ela respondeu que não. Que antes ela pensava que a TV era uma coisa fina, como um quadro que fosse possível pendurar na parede. Ela não imaginava que seria uma coisa mais parecida com uma caixa (naquele tempo, um caixote...).

Puxa vida, Vovó! Já se passaram tantos anos, tantos... e agora estão aparecendo umas tvs fininhas que nem as que a senhora imaginava!

Quando eu perguntei isto eu era um rapazinho de dezessete anos.

Envelheço quando lembro. 
=================

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes