O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 7 de janeiro de 2024

UM MENINO SOB AS ÁRVORES


Já estava ficando escandaloso aquele negócio de toda quinzena sumir um porco da Escola Agrícola.  Era mais ou menos agendado: semana sim, semana não, um belo dia de manhãzinha havia um porco de menos no chiqueiro. Depois de algum tempo os ladrões ficaram mais calmos e passaram a matar, limpar e esquartejar o bicho na escola mesmo, deixando para trás apenas a poça de sangue e algum miúdo inaproveitável.

Aquilo deixava tenso o pessoal da direção. A gente começava a suspeitar de todo mundo. Parecia, aos nossos olhos desconfiados, que não eram todos que estavam chateados... A direção tinha que fazer B.O. na polícia. E fazia, mas ficava só nisso. O B.O. servia só para instruir o processo de pedir baixa no inventário. Eu ouvia coisas assim: Fazer o quê, Não tem jeito, A escola está muito dentro da cidade... Ficava injuriado com aquele conformismo. Houve colegas que me disseram: Paulo, não esquenta muito a cabeça com isto, não. Você já passou na primeira fase do concurso para diretor, logo vai embora, não entra nessa encrenca, do mesmo jeito que tem gente boa, tem gente que não presta. E acrescentavam: Aqui na Agrícola sempre foi assim, sempre vai ser.

Isto que me diziam não adiantava, continuei achando que eu ia resolver o caso. Responsável pelo noturno, comecei a fazer uma grande ronda pela escola, antes de ir para casa às vinte e três horas. Com o farol alto, ia fazendo o carro percorrer todos os caminhos possíveis: atrás da lavanderia e da cozinha, em volta do campo de futebol, entre o galinheiro e os chiqueiros... Então pegava a estrada da horta, descia o morro em direção à silvicultura, pomar, ia até os estábulos, voltava por dentro do pasto, pegava a alameda dos ipês, ia pelo meio deles até ver o vulto encostado numa árvore... Opa, o que é aquilo?

Encostado na árvore, um vulto embrulhado num cobertor. Ia se levantando, saindo. Encostei o carro, abri a janela, reconheci: Toninho, que isso? O que você está fazendo aqui? Você está bem?

Estava bem demais. Quando entrou no carro, precisei apoiá-lo e vi que o cobertor estava gelado... Também, era junho... Ele destampou a falar, falava e me explicava: estava conversando com as árvores. Incrível como elas respondem. É uma coisa maravilhosa o jeito que elas conversam com a gente, nossa! As coisas que elas falam! Não dá para contar para todo mundo, tem gente que não entende, o senhor eu sei, é diretor, coisa e tal, mas o senhor é pessoa legal, o senhor entende: eu estava aqui, olhando as estrelas, está frio, o céu cheiinho de estrelas e eu estava aqui escutando o que as árvores estão falando, falando comigo... O senhor também gosta de andar debaixo das árvores, que eu já vi o senhor andando lá, olhando, o senhor também fala com elas.

Na diretoria o café da garrafa ainda estava meio quente, um restinho, ele tomou, sentou-se, continuou falando, excitado, emocionado... Eu ouvia, olhando para ele, pensando nas desconfianças dos inspetores, os armários dos alunos sempre vasculhados: vai que um deles guarda qualquer porcaria...

Toninho diminuiu o ritmo, cansado, talvez o efeito das árvores estivesse passando... Pediu para usar o banheiro. Primeira vez que um aluno usou o banheiro da diretoria. Ouvi que se lavava, longamente. Saiu renovado, agora já meio constrangido, envergonhado – e certamente um pouco temeroso. Olhou para mim: e eu era o diretor. Pediu desculpas... Não falou mais de estrelas nem de árvores. Foi para o dormitório.

A mãe veio buscá-lo poucos dias depois, ele ia se transferir para uma escola da sua cidade, a família achou que não estava dando certo esse negócio de estudar longe, morar longe, ficar um tempão sem ver o seu pessoal...  

Continuei pensando muito nele toda vez que passava na alameda dos ipês. Continuo pensando nele, agora que eu passo por ruas escuras e vejo meninos no sereno... Mas estes meninos parece que não querem conversar sobre árvores, não querem falar de estrelas.

O que eu pretendia com os faróis iluminando os caminhos da Escola Agrícola? Procurava culpados, mas encontrei uma pequena vítima. Se encontrasse os culpados pelo furto dos porcos, o que eu iria fazer? Dar um tiro imaginário: nunca tive arma... Encontrei um dos nossos jovens sob os ipês, o mínimo seria tirá-lo do relento, ouvir suas poesias loucas... E dividir a preocupação com a família, como acabei fazendo.

Quanto aos porcos, continuaram a desaparecer regularmente. Teria alguma noite o ladrão passado sob os olhos do menino das árvores?  Pode ser, nunca soubemos. O que um teria pensado sobre o outro?

Um mês depois, fui embora da Escola Agrícola, ia ser coordenador em Santa Branca, enquanto aguardava as provas da segunda fase do concurso para diretor. O último lugar que visitei antes de sair foi a alameda dos ipês, entre os pastos e a suinocultura. Era julho, de frio e céu azul. A alameda tinha virado um luminoso túnel amarelo, dourado: flores nas árvores, flores descendo no vento, flores cobrindo o chão como um tapete.