Saí de Coruputuba e fui morar no Porto Novo, em Caraguatatuba, e
logo depois em Jacareí. Nesses novos lugares, as pessoas estranhavam algumas
coisas no meu linguajar. E achavam interessantes, e comentavam, as minhas
expressões de despedidas: “Vai com Deus!” e “Fica com Deus!” Então, fui
percebendo com mais clareza: O lugar onde nasci e cresci era um lugar muito
católico, e a nossa formação foi completamente católica.
Os homens eram Congregados Marianos, as mulheres eram da Associação
de São José, as moças eram Filhas de Maria, as crianças eram da Cruzada
Eucarística. E ainda havia os Vicentinos e outras Irmandades. Tudo isto com os
seus rituais, suas reuniões semanais, suas fitas e medalhas, seus hinos e seus
lugares marcados na igreja, seus pelotões organizados nas procissões, os
andores próprios de cada grupo. Adolescente, saí da Cruzada e entrei na
Congregação como Aspirante: fita azul fininha com uma pequena medalha. Dois
anos depois, Noviço: fita azul média e medalha maiorzinha. Até que cheguei à
Congregação Mariana propriamente dita: fita azul larga e medalha de bom
tamanho, pesadinha. Isto, sem falar que eu e meus irmãos, desde os oito, nove
anos de idade já éramos Coroinhas, sabendo ajudar às missas e dialogar em latim
com o celebrante, como era o uso da época.
O cumprimento usual em Coruputuba, não era um cumprimento, era uma
jaculatória. Cruzava com algum confrade? Nada de bom dia, boa tarde, boa noite.
Era assim: “Salve Maria!”
Em casa já era assim desde pequenos. Levantou? “A bênção, Pai! A
bênção, Mãe! A bênção, Vó!” Não bastasse pedir a bênção, ainda fazíamos uma
pergunta retórica para o Pai: “Reza o Anjo do Senhor?” ao que o Pai respondia
“Reza!”. Então, rezávamos: “O Anjo do Senhor, que por Divina Piedade, sois
nossa guarda etc.” e o ritual se repetia ao meio-dia, às seis da tarde e na
hora de deitar.
Toda noite, depois da janta, reza. Na sala, todo mundo rezando o
terço, com revezamento na hora de “puxar” cada um dos “mistérios” do terço.
Quando éramos crianças pequenas, a devoção era tão entranhada em nossos
pequenos corações que agora, à distância, fica até comovente lembrar a força e
a confiança que a gente punha nas orações e nos pedidos. Uma vez o Pedro nos
contou que toda noite ele rezava pedindo que, no dia seguinte, quando ele
estivesse no quintal brincando de rodar o pneu, Deus não permitisse que o pneu
passasse por cima de alguma bosta de galinha, porque isto era mesmo um pesadelo
para a gente.
À medida em que fomos crescendo, mesmo que a fé não tenha
diminuído, a liturgia foi ficando cansativa, os joelhos no chão de tijolo, o
calor, a vontade de fazer graça um para o outro... Mas o ritual católico
continuava nos encantando. E até hoje, a
ideia que tenho de alguma espécie de Céu é iluminada pelas lâmpadas azuladas da
capela-mor de Coruputuba – e o perfume do incenso vai ter que haver, se não, não
será Céu de verdade.
* * *
Texto de
Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos www.pindamonhangaba.sp.gov.br –
Centenário da Fazenda Coruputuba
Acervo Patrick Assumpção
... "senão não será Céu de verdade.", papai é o máximo. Que coisa, né, papai, por muito tempo eu completamente desconheci que a infância de vocês tivesse sido tão religiosa. Nunca lembro de irmos à igreja quando eu era pequena, tanto que só fui saber melhor dos rituais litúrgicos depois de adulta. Mas acredito que os valores a serem passados importam muito mais que os rituais. Muitos se escondem em crenças e religiões para justificar atos nem tão éticos. Sou muito feliz em poder ter escolhido minha religião, ao invés de tê-la imposta. Que Deus o abençoe.
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