O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

ALCINDO NÃO ESTÁ




Coruputuba em tarde de sábado

Fui ver meu irmão e a cirurgia estava marcada para daí a dois dias, e não dava para saber que nosso prazo estava se esgotando muito depressa. Mas ele não queria conversar nada de metafísico. Queria conversar sobre Coruputuba, ir lembrando assim casa por casa, as pessoas, tinha mais ninguém pra gente falar disso. Ué, mas então vamos falar! Quer ver uma coisa? Lembra disso: “ALCINDO NÃO ESTÁ”? Claro que lembro, aquela plaquinha que ele punha na varanda. E eu lembro disso todo dia, sabe que hora? Quando tenho que sair do escritório, que não vou poder atender quem chegar, eu penduro uma plaquinha assim: “Fui ao Fórum”. Só que ponho o número do meu celular. Quando a gente ia cortar capim no cafezal atrás da casa dele, eu gostava de ver o cavalo dele, na cocheirinha. ‒ Isso. Era um ranchinho, com a charrete. Mas ele saía muito era com a bicicleta. Ah. Pra vir correndo atrás da gente que estava dando estilingada no cacho de coquinho. Vinha apitando!
Mas Bosco, você lembra que gostoso nas tardes de sábado? Quando o pessoal do Seu Alcindo varria as folhas secas em volta do campo? Nossa, até hoje lembro, quando sinto cheirinho de folha de eucalipto queimando. É, ficava uma fumacinha azulada, demorava... E as casas da nossa rua, Paulo, vamos ver. A primeira casa.
Era a casa do Seu Totoizinho e da Dona Marina. Lembra o nome de todo mundo? Não. Eu lembro do Aurélio, do Ademir... O Lélo, certo? E o Mica. Tinha mais gente. O mais velho acho que você não lembra, Bosco. Era o Toninho, que casou com a Nilce Duran. Não, não lembro. Lembro da Dirce. Sim, a Dirce, a Cenira... os menorzinhos não lembro. Nossa, a gente era bobo. Eles ficavam brincando no tanquinho dos patos e a gente falava que eles tinham piscina... Dava inveja... Olha, foi na casa deles que a gente viu coelho pela primeira vez na vida. Eles falavam que era lebre.
Bom, vamos andar mais, a segunda casa, quem que era? Ué, do Seu Enéas, que a gente ia assistir televisão. A mulher dele, lembra? Não. Lembro da Maria Amélia.  Então, a mulher do Seu Enéas era a Dona Sinhá. Tinham um filho grande, lembra? O nome não lembro. Lembro que ele andava de bicicleta, de camiseta branca. Era o Valdemar. Que tinha a história do cachorro dele. ‒ ?  O cachorro que salvou a vida dele. Ele sempre ia pescar no primeiro tanque e o cachorro latiu, tinha um jacaré no meio do capim, atrás do Valdemar. O jacaré avançou, catou o cachorro e entrou na água. Ah, a gente viu o jacaré, quando mataram. Foi. Puseram na caminhonete, tiveram que dobrar o rabo para caber na caçamba. Um baita de um jacaré. Bosco, esse jacaré está empalhado, fica no escritório do Patrick. Tinha uma moça também, fora a Maria Amélia.  Era a Dagmar. O Seu Enéas era irmão do Seu Alcindo. Lembra a família do Seu Alcindo? Não.
A mulher do Seu Alcindo era a Dona Eulália, professora. Tinha uma filha, uma moça bonita, professora também, era a Rute. Quando lancei o meu livro consegui contato com ela, estava morando em São Paulo, tinha uns oitenta anos. Comprou o meu livro. Passei o telefone dela para o Zaga, que foi aluno dela no primário. Eles conseguiram conversar, trocar carta, sei lá. Ela já morreu.
E a próxima casa? Seu Sebastião Leite. Não, tinha uma antes. Aquele bloco tinha três casas. A do Seu Enéas numa ponta e a do Seu Sebastião Leite na outra. No meio tinha uma casa que não tinha acesso para o quintal. Não lembro. Era a casa da Dona Basta. O marido dela era caçador, tinha uns cachorros bonitos, perdigueiros. O Seu Sebastião Leite tinha uma filha. A Fia. E um menino. Não lembro. Lembro da vendinha que eles tinham, eu ia lá com a Ana Clara, comprar linha, agulha, sianinha, dedal...
Depois vinha a casa do Seu Dimas. Que tinha os pombinhos. Lembra do filho deles? Não lembro o nome. Ué, era o Vitor. Ele ia em casa para aprender latim. Não sei se com o Pedro ou o Zaga. Depois vinha a casa do Seu Alberto Duran. Dona Antônia. Carlos Alberto, Edson, Miguel, Neide, Toninho... Depois os nossos vizinhos, o Seu Luis Crepaldi, Dona Teresinha, a Sueli, Teresinha, ... Nunca mais vi o Ângelo!
Depois da nossa casa, vinha a casa do Seu Moacir Amarante. É, Dona Tereza Amarante, Doroti, Zezé, Miltinho, Leninha... Reparou? Três Teresas vizinhas: Dona Teresinha Crepaldi, a nossa mãe e a Dona Tereza Amarante. Sim, mas antes dos Amarantes, quem morava lá? Não lembra... Seu Dolivo e Dona Maria Varela. Ah é. Washington e Robinson. Depois, o Renato, a Márcia... a Miriam... sim, filhos da Dona Anézia. E na ponta? O Seu João da Ponta.... da cesta de natal.
Tá bom, me ajuda a levantar, quero te mostrar o quintal.
Tá vendo aqui, meu computador. (Pensei, caramba, nesse computador ele já pesquisou tudo sobre a doença...).
Ah, o quintalzinho gramado, pé de laranja, hortinha, do outro lado do muro, o bambuzal balançando, a paineira com bem-te-vi... Depois, fomos ver o jardinzinho: olha, aquela primavera não é trepadeira, é de pendurar. As flores, bonitas no sol da tarde. O canarinho, na varanda, cantava baixinho.
Quando voltei, depois da cirurgia, a conversa não prosperou. Falei bastante, ele olhava para o teto. Concordava um pouco comigo. Lembrei de novo da história do Alcindo não está, acrescentei o capim d’angola que a gente procurava para os coelhos e para a cabra. Sim, ele concordava. A próxima vez já foi na Santa Casa. Eu falava sem desespero sobre os pombinhos, falava devagar, ele olhava nos meus olhos, fixamente, eu acariciava suas sobrancelhas, a testa, os cabelos... O que eu tinha para falar a respeito do céu era isto: a cabrita marrom, os filhotinhos de coelho, a pombinha cinza, os pezinhos de milho, o cheiro do eucalipto, os periquitos verdes, o pé de mamão... e o galo cantando de madrugada.
Dormiu, fechou os olhinhos, falei mais um pouco, fiquei quieto, vim embora... 
Dia seguinte, o enterro. E agora, o tempo vai passando. E agora, agora Alcindo não está, Bosquinho não está, Coruputuba não está, a infância, coitada, não está mais, faz tempo.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Começando a ser professor

Grupo Escolar Rural Antônio Bicudo Leme
(mais tarde, Martinico Prado)


No final do curso ginasial, já tinha me decidido a fazer a Escola Normal, queria ser professor. Por vários motivos, inclusive para imitar meu pai, mas o mais importante mesmo foi a necessidade econômica: precisava fazer um curso que me desse um emprego de imediato.
Cursei a Escola Normal, no Instituto de Educação João Gomes de Araújo, de 1964 a 1966. Na época, eram poucos os homens que faziam esse curso de magistério primário. Porém, logo no primeiro dia de aula, descobri que eu não ia ser o bendito é o fruto. Também o José de Freitas e o José Eduardo Carneiro tinham decidido pela carreira. Na semana seguinte, juntaram-se a nós o Candinho, filho do Seu Cândido do correio, e o Welton Cypriano. Nós cinco, no meio de oitenta moças.
Foram três anos muito bons. O que teve importância mesmo, na minha formação pedagógica, foram as aulas de Psicologia, com a Professora Maria Luiza Bartholomeu Silva, que nos deu a base científica do ensinar/aprender, e as aulas de Prática de Ensino, com a Professora Ignez San Martin de Abreu, que nos ensinou as técnicas de ensino e como planejar esse ensino.
Mais que isto, devo à Professora Ignez o entusiasmo pela profissão. Nunca tinha presenciado alguém falar com tanto carinho sobre o professor primário, sobre o milagre de suas realizações diárias. Mais tarde, por este grande Vale do Paraíba e em outros lugares do Estado, tive que ouvir pessoas falando mal da nossa profissão, fazendo pouco caso, pessoas maldosas, ignorantes... Mas, para mim, eram frases inócuas. Palavras poderosas foram as que ouvi de Dona Ignez na minha juventude. Essas palavras, que gravei no coração, marcaram o meu rumo profissional.
Terminei o curso normal e fui ser professor, na mesma escola em que passei a infância. O Grupo Escolar Rural Antônio Bicudo Leme, em Coruputuba. Professor substituto, tinha obrigação de comparecer todos os dias, mas só seria remunerado se, de fato, ministrasse aula, ou seja, se entrasse em classe para substituir o titular que faltou. Quando não faltava ninguém, devia permanecer na escola durante duas horas, ajudando no que fosse possível, na biblioteca, na secretaria, mas sem qualquer remuneração.
Porém, havia – já naquele tempo – alguns alunos malcriados, alunos que percebiam que eu era um novato, faziam pouco caso, debochavam: Professorzinho... Corrigiam-me: Não é assim que a professora faz. Cochichavam: Não sabe dar aula... E gargalharam sem dó quando, tentando abrir um armário de porta emperrada, fiz o móvel balançar e veio para cima de minha cabeça o vaso da professora, com água, flores e tudo mais, e doeu bastante, o bendito vaso era pesado... Por tudo isto, comecei minha carreira de professor com muito medo de dar aula. No caminho para a escola, eu ia pensando: Ah, Meu Deus, tomara que nenhum professor falte!
E finalmente me foi atribuída uma classe para o ano inteiro. Uma professora tinha se afastado, em licença médica. Então foi diferente, já não era um substituto que entrava de vez em quando numa classe para tapar buraco. Sentindo-me mais garantido, pude começar a experimentar o meu jeito de dar aula. Ainda não tinha lido sobre como é fácil e perigoso o professor calouro começar a dar aulas imitando os seus antigos professores, sem refletir. Logo, comecei – sem refletir sobre isto – a ensinar meus alunos do terceiro ou do quarto ano do mesmo modo como os meus professores do primário me ensinaram, com as mesmas técnicas, as mesmas rotinas. Até as mesmas canções para a fila da entrada.
Mas era só o começo, tinha mesmo que ir tateando, procurando meu caminho pedagógico.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro Aconteceu na Escola, 2012.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Uma tarde sessenta anos atrás





Eu tinha dez anos, ia de velhas alpargatas,
eu e mais o meu irmão Paulo Tarcizio,
cumprir alguma tarefa arriscada,
como buscar água em verdes garrafões
com alça de palha trançada.
Tínhamos que falar baixo no perigo da tarefa,

medindo o ruído dos pés, por medo dos cachorrões,
Moles cachorrões estirados na terra.
Eram quatro da tarde, havia a rua e a lua.
A rua era sulcada por lentos ciclistas,
vinham do serviço conversando sossegados,
no vernáculo simples que cabia em suas vidas.
A lua parecia um papel pálido colado no céu,
navegando em seu quarto crescente ia quase apagada
pela fumaça marrom com a tarde misturada.
A fábrica lançava seu longo e metálico apito
e corriam na bicicleta os operários de marmita.
O relógio da igreja batia quatro vezes bem contadas.
Meninos jogavam futebol, com chutes para o céu arremetidos,
desfolhando a galharia verde escura dos eucaliptos.
Crianças de azul e branco vinham do grupo escolar,
acompanhando suas professoras maternas e graves.
Um carro de boi de rodas gementes vinha devagar
e pombas brancas planavam em círculos suaves.
Os garrafões pesavam, íamos agora calados,
olhando a lua já liberta da fumaça.
Nossos pensamentos iam melancólicos, embarcados
no ronco distante e tristonho de um avião que passava.
...........................
Do poeta Luiz Gonzaga da Silva Marcondes, no livro Espelho Azul, Ed 2006.
Luiz Gonzaga, filho do Professor Francisco Fonseca Marcondes, nasceu em Coruputuba em 1945. Iniciou seus estudos no Grupo Escolar Rural Antônio Bicudo Leme. Hoje, promotor público aposentado e advogado atuante, reside em Limeira, SP.

Do poeta Luiz Gonzaga da Silva Marcondes, no livro Espelho Azul, Ed 2006.
Luiz Gonzaga, filho do Professor Francisco Fonseca Marcondes, nasceu em Coruputuba em 1945. Iniciou seus estudos no Grupo Escolar Rural Antônio Bicudo Leme. Hoje, promotor público aposentado e advogado atuante, reside em Limeira, SP.


sábado, 13 de julho de 2019

Primavera em Santa Branca



Convidado a exercer a função de Coordenador Pedagógico em Santa Branca, dispus-me a não ser chato. Este era, para os professores, o conceito em que tinham os coordenadores. Falava-se em coordenador e já se imaginavam grandes pacotes de formulários para preencher, justificar, planejar, avaliar... Deixei os papéis de lado e procurei usufruir do convívio com os docentes. Ora, na função anterior, de Orientador Educacional, eu convivi tanto com os alunos! Agora, queria partilhar o dia a dia dos professores, tornar-me pessoa de sua confiança, para construir relações produtivas e, assim, beneficiar os clientes da escola: os alunos e suas famílias.
Um ambiente amoroso, familiar, todos se conheciam naquela pequena cidade. Todo mundo na escola era meio parente. Professores, escriturários, serventes, alunos, professores, todos envolvidos nas gostosas e às vezes polêmicas redes de parentesco. Lá encontrei o Leopoldo, o melhor professor de Matemática que já conheci. O único que vi mantendo regularmente um jornal mural de Matemática no pátio, com charadas matemáticas, biografias de grandes matemáticos, piadas matemáticas... Vi o sobrenome dele e já matei: Você é irmão do Seu Toninho, que foi meu professor no quarto ano do grupo em Corupu-tuba! Que me entregou o diploma do primário!
Era sim, o Leopoldo era irmão do Seu Toninho. Tão bem humorado quanto o meu professor. Mantinha com os alunos do noturno uma relação tão cordial que eles jogavam futebol de salão juntos quase toda semana. Como eu tinha que ficar lá mesmo entre o final do período da tarde e o início do noturno, também ia para a quadra, e aquela brincadeira tornava natural e amigável a nossa convivência.
Foram somente sete meses em Santa Branca, na escola Francisca Rosa Gomes. Era para eu ser Coordenador, mas em alguns momentos acabei ficando, na prática, responsável pela escola toda, quando dos afastamentos da diretora e da assistente, em férias ou em licença.
Nos primeiros dias já descobri como que funciona de verdade uma escola comum do Estado. Ainda não tinha trabalhado em cargo administrativo numa escola comum, tinha trabalhado só nas exceções. Tinha sido professor num grupo escolar rural, numa escola regimental do exército, numa escola na praia, numa escola isolada na roça... Mas em cargo administrativo tinha trabalhado em duas enormes exceções: a Escola Técnica Prof. Everardo Passos, particular, em São José dos Campos, e a Escola Agrícola Cônego José Bento, estadual, em Jacareí. Agora, em Santa Branca, eu entrava em contato direto com as tarefas administrativas de uma escola estadual com classes de primário de dia e com classes de quinta a oitava e de segundo grau à noite. Descobria que, independente do nome do cargo, quem estiver na escola acaba sendo, muitas vezes ao mesmo tempo, coordenador, diretor, secretário, escriturário, servente, merendeiro... Quantas e quantas vezes, mais tarde, já diretor de escola, tive que fazer a merenda, atender no guichê da secretaria, limpar as salas da administração, passar café... Ué, mas na escola de roça do Rio Abaixo, também não era assim? Quem que fazia a merenda, limpava o banheiro? Só que eu pensava que nas escolas maiores as funções estariam melhor distribuídas. E estavam, mas, no dia a dia, pessoas faltavam, tiravam licença, afastavam-se – e alguém tinha que cobrir. Esta prontidão para fazer de tudo, na medida em que fosse necessário, comecei a adquirir em Santa Branca.
Foram dias maravilhosos, produtivos. A relação com os professores ficou ótima, viramos amigos carinhosos até, sem perder de vista o objetivo de minha função de Coordenador: instrumentar os professores para uma relação produtiva com os alunos. Isto fizemos, de fato. O Jornal de Matemática do Leopoldo, devidamente endeusado por mim, gerou outros jornais murais, sobre outras matérias, sob a direção de outros professores ou grupos de alunos. Uma vitória particular foi a abertura da biblioteca. Cheinha de livros interessantíssimos, coleções infantis e juvenis, livros para cultura pedagógica, livros de psicologia... Centenas de volumes, impecáveis em suas capas de papelão azul, ficavam retinhos nas estantes, todos perfeitamente alinhados.
Mas ninguém lia. O livro de registro de empréstimo marcava exatamente sete retiradas desde o começo do ano, e estávamos em julho. A diretora, Professora Julieta, uma das pessoas mais ponderadas e calmas que conheci, ensinou-me bastante sobre organização de secretaria, controle de fichas de alunos, controle da vida funcional dos professores e funcionários (tudo que ela aprendeu com o Prof. José Thomé Júnior, o mesmo Seu Thomé da minha infância em Coruputuba - Ora, o Vale é tão pequeno!). Com relação à biblioteca, explicou-me que ficava fechada porque não tinha quem tomasse conta. Percebi que imperava na escola uma grande preocupação com a conservação dos livros, eles constavam dos inventários, não se podia correr o risco de danos, desaparecimento etc. Os livros deviam ser conservados como tinham sido recebidos, sem nada amassado, sem páginas rabiscadas, coisas assim. Parecia que de repente ia surgir uma visita de inspeção querendo conferir os livros volume por volume! Por isto, quando alguém queria ler um livro, precisava que um funcionário pegasse a chave e fosse lá buscá-lo. Concluí: é por isto que até julho foram registradas somente sete retiradas.
Propus à Dona Julieta: Fica sendo meu lugar de trabalho a biblioteca. Tem uma mesa lá, tem o mimeógrafo, arranja uma máquina de escrever, arranja essas coisas que eu fico na biblioteca com a porta aberta, vamos ver o que acontece.
Havia na Biblioteca uma samambaia num xaxim, mirrada, pálida... Num sábado fui trabalhar de manhã e, pela primeira vez, o sol penetrou na Biblioteca, iluminando os livros, as crianças das aulas de reforço e suas professoras que, também pela primeira vez, estavam vendo a biblioteca aberta.
Assim, aquele “vamos ver o que acontece” resultou nisto: a biblioteca virou ponto de encontro do coordenador com professores, que vinham trocar ideias. Dali a pouco, virou uma salinha para alunos também virem conversar comigo, além de retirar livros. Estava sendo reeditado o meu gabinete de orientação educacional, incluindo o meu cavalete de pintura, as telas, os pincéis, o cheiro de terebentina...
Só que a lembrança da ETEP me trouxe a vontade de reviver o clima de plena autonomia dos alunos. Dividi com alguns professores o sonho de uma escola onde permanecessem na sala de aula somente os alunos que estivessem mesmo querendo assistir a aula, sendo que os demais poderiam sair da sala, mas seriam, em vez de repreendidos, acolhidos amigavelmente pelos educadores disponíveis no momento.

 Educador disponível no momento – Definição 1 - Aquele que não está enfiado na diretoria debaixo de uma pilha de diário oficial, ou tentando alterar o horário das aulas porque uma professora desistiu e a que pegou as aulas não pode dar aula na quarta e nem na sexta, ou está fechando o balancete da APM, mas não vai dar tempo porque já foi convocada nova reunião na delegacia de ensino e o supervisor já avisou que vem à escola para assinar os certificados de conclusão, que ainda não estão prontos etc.
Educador disponível no momento – Definição 2 – O Paulo, que acabou de chegar e já está propondo essas coisas de liberdade e autonomia.

Bom, o Educador Disponível realmente estava ansioso para colocar os alunos do noturno em conflito: permanecer na sala de aula participando da aula de História, Geografia etc. ou ir para o galpão onde o Educador Disponível está tocando violão ou falando sobre poesia na Biblioteca? Ou ainda, ficar na classe fazendo os problemas de Física ou ir estudar Física na prática, jogando pingue-pongue no pátio, na mesa que o Educador Disponível desenterrou de não sei onde, limpou e montou?
Nas conversas informais, fui percebendo que havia professores que se encantavam com a ideia (a ideia, de verdade, nem era minha, era de Alexander S. Neil) e havia outros que declaravam que não dava certo em Santa Branca. Havia uns terceiros que julgavam que a ideia tinha que ser bem discutida. Discutindo a ideia com a direção, vi que o caminho não estava fechado não, estava aberto e passava pela discussão no Conselho de Escola. Apresentei ao Conselho, por escrito, uma tese propondo que se mantivessem os portões fechados, os professores se mantivessem normalmente em sala de aula, fizessem a chamada com o rigor costumeiro, só registrando presença para quem estivesse realmente presente. Aluno que quisesse ficar no galpão, na biblioteca, na quadra, poderia fazer como entendesse, sabendo que estava sendo registrada sua falta. O objetivo era permitir que o aluno tomasse suas próprias decisões, ganhasse autonomia, pudesse dispensar que outras pessoas decidissem tudo em seu lugar – pudesse escolher seus caminhos, responsabilizando-se pelas consequências de seus atos. Finalmente, o Conselho se reuniu.
Foi a primeira vez que vi um Conselho de Escola debater assunto sério mesmo. O mais que eu tinha presenciado até ali, em outras escolas, era sobre punição de alunos ou prioridades para aplicação de verbas. Agora, ia-se discutir, de modo maduro e profissional, o que a escola poderia fazer em benefício do crescimento da autonomia dos alunos. Não há assunto mais sério em Educação. A tese foi aprovada, após muito debate. Houve votos contrários, foram dos alunos representantes no Conselho, que se mostraram mais conservadores do que os professores e os pais.
E, na noite seguinte, começou a primavera em Santa Branca. Parecia uma escola de nível superior, parecia uma escola de artes. Muitos alunos ficaram nas salas de aula, tendo aulas normais. Mas um bom número veio para a biblioteca, para o pingue-pongue, para o violão no galpão, para a quadra. Com o passar das semanas, milagre: alunos estudando no galpão, em grupo. Fomos percebendo que os alunos do noturno não tinham tempo para estudar e agora estavam aproveitando a liberdade conquistada para, durante a segunda aula, ficar estudando para a prova que ia acontecer nas duas últimas. Com a liberdade de ir e vir dentro da escola, a biblioteca virou sucesso de público. Em dezembro, o livro de registro já apontava mais de quatrocentos empréstimos. Talvez um ou outro volume tenha sido danificado, talvez. Mas a biblioteca, por fim, estava cumprindo sua missão. Os soldadinhos encapados de azul tinha sido convocados! A escola ficou barulhenta, movimentada. Alunos se deslocando pelo pátio, conversando, rindo, cantando – tudo isto incomoda muito a nós educadores, que gostamos de falar em construtivismo, escola ativa, aulas mais práticas – desde que não nos atormentem! Há exceções, mas o que de fato até hoje deixa um diretor nervoso é aluno zanzando. Diretor gosta mesmo é de alunos quietos em suas classes, professor dando aula na lousa. Por isto é que tinha sido importante envolver todo o pessoal da escola na discussão das novas medidas.
O ano de 1978 estava terminando. Fui aprovado na segunda fase do concurso, ia ser diretor, ia deixar Santa Branca. Veio a formatura, com muitas despedidas comoventes, laços tinham se formado com aqueles alunos e professores, a gente provavelmente não ia mais se ver. Veio o Natal, vieram as férias de janeiro, fiquei ajudando a montar as classes para o ano que começava elaborando os planos. Nos intervalos, perambulava pela escola deserta, como um pardal cheio de saudades, examinando as salas, os corredores...
Em fevereiro, véspera do primeiro dia de aula, fui embora. Ia dirigir a Escola de Igaratá. E a Escola Francisca Rosa Gomes, lá no alto do morro, bem perto da ponte do Paraíba, ia ficar para sempre na minha lembrança como o lugar onde fizemos brotar uma espécie de primavera, superando o medo que todos nós tínhamos – e ainda temos – da liberdade.
Alguns meses depois, fiquei sabendo que tudo tinha voltado ao normal na Francisca Rosa. Pessoas se aposentaram, Dona Julieta também saiu, foi ser diretora efetiva em São José dos Campos, os que ficaram sentiram-se intimidados em continuar mantendo as medidas implantadas por quem tinha já ido embora.
Então, realmente, foi só mesmo uma primavera.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro ACONTECEU NA ESCOLA
ISBN 978-85-913453-4

quarta-feira, 27 de março de 2019

O que rolou de ontem para hoje



“Fazei-me instrumento de Vossa paz!”
Oração de São Francisco de Assis

Para o Professor é mais um dia de aula, um dia como outro qualquer, será uma aula como qualquer outra. Tantos anos, tanto giz, tantos diários de classe... Não há mais diferença, podemos engatar o piloto automático que a aula sairá como sempre, com começo, meio e fim. O olhar flutuando rapidamente sobre as cabeças dos jovens, a chamada, a lousa, os trabalhos, o livro, a tentativa de controlar a atenção rebelde, a tarefa para casa, o sinal... Sim, vai ser mais um dia. Será mais um dia de aula, como qualquer outro.
Está bem, Professor. Mas agora pare. Pare aí mesmo, na porta da sala de aula. Quer dizer, pare só um pouquinho, também não precisa chamar a atenção dos alunos, não precisa que eles estranhem essa paradinha. Então não pare nada, entre direto. Só que hoje, antes de iniciar suas atividades rotineiras, dedique dois segundos para este pensamento, para esta constatação: Como assim um dia como outro qualquer? Você não sabe uma coisa, falta-lhe uma informação, uma preciosíssima informação. Sem ela você é fraco, ineficiente, ineficaz.
Mas não tem jeito de obter a informação – e você não poderá ser um fracasso hoje. Então assuma estas verdades: Primeira: Você não sabe o que rolou de ontem para hoje na vida de cada um de seus alunos. Segunda: Não tem jeito de saber. Terceira: Sem saber o que rolou você não poderá dar a aula mais adequada para a situação.
Nada de desespero, meu amigo Professor. Falta ainda a quarta verdade: O fato de não saber o que rolou, somado à constatação de que dar aula sem saber isto é tempo desperdiçado, ainda somado ao fato de que é impossível descobrir o que rolou, tudo isto junto lhe fornece a quarta verdade.
Que é a humildade. A humildade do cego que não sabe o caminho, sabe que nunca verá o caminho, mas apalpa e vai em frente.
Ah, meu amigo Professor! Você não sabe como as suas palavras serão recebidas por seus alunos. Então vá como o cego vai, com um respeito digamos assim: religioso, respeitando profundamente cada aluno como o cego respeita o caminho por onde precisa passar. Pesando a palavra, pesando o olhar, pesando o silêncio.
Olhe para a sua classe. Um desses alunos está em carne viva.
Rolou uma coisa na vida dele, de ontem para hoje. E você não sabe qual desses alunos. Um deles perdeu uma coisa que nunca tinha pensado possível perder. Um deles conquistou uma coisa que julgava inconquistável. Um descobriu que o globo terrestre continua a girar apesar do que rolou.
Um deles descobriu o veneno da traição. Um sentiu pela primeira vez medo de viver. O remorso brotou em alguém, a preocupação alugou uma cabeça, parece que para sempre. Outro mandou tudo às favas e está prestes a incluir você na lista.
Então não leve a sério toda palavra inábil. Preste a atenção a cada sorriso, porque é uma flor brotando onde isto pareceria impossível se você tivesse todas as informações.
Nestes anos todos de magistério já aconteceu de eu ter sido completamente desajeitado... diante de uma criança, diante de um adolescente, diante de um adulto – diante de um aluno que, naquele dia, naquela aula, precisava tanto de uma atenção, pequena que fosse... E eu passei reto, ocupado com a matéria...
Por não saber o que tinha rolado. Por não perceber que não sabia. Por não compreender que jamais saberia e, por isto mesmo, deveria ter sido o melhor que eu poderia ser, o mais delicado possível, o mais acolhedor, o mais solícito. Cuidadoso, como um cego numa estrada que ele não conhece.
Mas tudo bem, Professor. Agora, agora você já pode fazer a chamada.
Boa aula, Professor.

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Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, no livro “Aconteceu na Escola”