O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 21 de abril de 2024

Faz uma loucura por mim

 


Em 2004 escrevi um conto sobre o lago do Haras, falando do tempo em que ele foi esvaziado, que sumiram as capivaras e tudo ali ficou muito triste. Pois sabe que o meu conto ganhou um belo prêmio na Secretaria de Cultura do Estado? Recebi o meu diploma de participação das mãos da atriz Leona Cavalli, no Memorial da América Latina.

Fiquei meio famosinho lá em São Paulo. E então, a Secretaria de Cultura começou a me convidar para quase todos os eventos que surgiam. E mandou me convidar para a inauguração da biblioteca da Casa das Rosas, na Avenida Paulista. Um lugar maravilhoso de lindo, na avenida mais bonita da capital.

Atendi o telefone dizendo que sim, que eu ia comparecer àquela importante inauguração, ia com minha esposa Anamaria, mas eu queria um momento na programação para declamar. Afinal, numa inauguração de biblioteca, a coisa mais certa do mundo era um poeta declamar o poema O LIVRO E A AMÉRICA, de Castro Alves.

A assessora da Secretaria da Cultura falou que sim, que muito bom eu me dispor a declamar, que ela ia ver um espaço no programa, ia encaixar com certeza, que eu ficasse sossegado.

E, no dia marcado, lá fomos eu e Anamaria, para São Paulo, escutando alguns CDs muitos bons durante a viagem. Alcione e seus grandes sucessos, como FAZ UMA LOUCURA POR MIM e outras músicas, e outros cantores.

Chegando no lugar do evento, nossa, estava tudo lotado. Fomos nos esgueirando no meio do povo, vimos que já estava lá o governador Geraldo Alckmin, o Secretário da Cultura Gabriel Chalita, que tinha sido meu colega na faculdade de direito, e mais um pessoal que eu tinha conhecido na premiação do meu conto. Mas nem deu para chegar perto deles, quanto mais conversar com eles naquela hora.

Alguém avisou, no sistema de som, que todos estavam convidados para circular pelas salas da biblioteca, para conhecer as instalações. Foi o que fizemos. E, nessas voltas, meio espremidinhos no meio das pessoas, nos encontramos com o nosso Geraldinho e pudemos conversar. Dei-lhe um exemplar do meu conto sobre o Haras e ele nos contou que já estava aprovada a verba para reconstruir a barragem que tinha sido rompida. Que era por isso que o lago tinha sido esvaziado. Mais algumas voltas e todos foram chamados para a sala principal, debaixo da escada, para a solenidade.

Aí encontrei a assessora, que veio me pedir muita desculpa e coisa e tal, porque ela já tinha conversado com o gabinete do governador e ele ia ter que sair do evento muito depressa porque tinha outro compromisso em outro lugar etc. etc. e também o Secretário Chalita precisava comparecer em outra reunião em outro bairro e - moral da história - ia ser tudo muito rápido - não ia dar para eu declamar o poema.

As autoridades já tinham começado a falar nos microfones. Tinha começado a solenidade. Fiquei meio desanimadão. Mas Anamaria segurou no meu braço e me falou: - Faz uma loucura por mim. VAI LÁ E DECLAMA.

Então deixei minha pasta com ela e, antes que o governador fosse chamado para falar, atravessei o povo, cabeça erguida, subi o primeiro lance da escada, dobrei o segundo lance, parei, olhei para o público ali embaixo e declarei em alta voz: DE ANTONIO FREDERICO DE CASTRO ALVES: O LIVRO E A AMÉRICA. E comecei: “Talhado para as grandezas, / para crescer, criar, subir / o novo mundo nos músculos / sente a seiva do porvir / ...”

Silêncio absoluto na plateia. O governador quieto, respeitoso, olhando para mim. Todos olhando para mim. Alguém, isolado, bradou: É DO TEATRO. E prossegui, até final. Vibração silenciosa mas perceptível na passagem mais conhecida: Ó bendito o que semeia / livros, livros à mão cheia, / e manda o povo pensar! / O livro, caindo n’alma, / é germe - que faz a palma! / é chuva - que faz o mar!.

Aplausos, muitos, no final. Desço os degraus para ser cumprimentado primeiro pelo governador, que me apresenta à roda dos amigos: “O Paulo é de Pinda! O Paulo é de Pinda!"

E a assessora do gabinete veio, meio risonha, me cumprimentar: Que bom que ainda deu certo, não é?

Participamos do coquetel, bastante conversa, risos, alegria... E depois, eu e Anamaria voltamos pela Dutra, ouvindo música. Música da Alcione, a famosa Marrom.

domingo, 14 de abril de 2024

Espalhando as sementes




Cada semente existe para se transformar numa planta e garantir a continuidade da sua espécie. Um caroço de abacate quer se transformar num belo abacateiro. Uma sementinha de mamão tem o destino de brotar e virar um lindo mamoeiro, e assim por diante.

 As plantas, todas elas, desde as mais pequeninas e rasteiras, até as mais gigantescas árvores, vieram aprendendo, em milhões de anos, que precisam espalhar suas sementes. Que as novas plantas não podem crescer na sombra das plantas-mãe.

Não adianta você plantar um caroço de manga na sombra da mangueira velha. A nova plantinha até vai brotar, crescer um pouco, mas não vai produzir nada na sombra da mãe. 

As plantas que mais deram certo neste mundo são as que arranjaram algum jeito de mandar suas sementes para bem longe, para espalhar a espécie para outros bairros, outros lugares, outros países. 

A paineira manda as suas sementes, redondas e pretas, umas bolinhas duras, dentro de um tufo de algodão, a paina, que vai viajando com o vento, vai longe, longe, como pequenas naves espaciais que vão aterrizando nos quintais, nos pastos e na beira das estradas. Algumas dessas sementes encontram um chão bom, úmido e brotam, formando uma nova e gigantesca paineira. 

Assim também a delicada plantinha dente de leão, que forma uma flor muito levinha, leve, que as crianças gostam de soprar e que se desmancha no ar, e os pequeninos paraquedas vão flutuando levando uma semente minúscula para ir em busca de um chão onde possa germinar. 

Na entrada principal do Shopping Pátio Pinda há uma fileira de imponentes guapuruvus, árvores enormes, que também usam o vento para espalhar suas sementes. A semente fica dentro de uma vagem que tem uma semente só, bem na ponta. Quando as vagens estão bem sequinhas e leves, elas descem girando como pequenos helicópteros, vêm descendo lá do alto dos enormes guapuruvus, e vem girando no vento, procurando um lugar para aterrizar. 

Algumas plantas atiram suas sementes com força, quando estão maduras. Daqui a alguns meses você vai estar na praça principal da cidade e vai escutar um barulho que parece um tiroteio. São as sibipirunas da Praça Monsenhor Marcondes. As flores amarelas já caíram e no lugar delas nasceram umas vagens verdes que depois amadureceram e secaram. Quando estão bem secas e as sementes dentro delas estão prontas, as vagens explodem, atirando longe as sementes rijas, fazendo barulho. A intenção da sibipiruna é esta mesma: jogar suas sementes bem longe, para que elas brotem longe da sombra da árvore mãe. 

Muitas plantas, com o passar de milhões de anos, foram inventando alguns jeitos bem espertos de mandarem suas sementes para longe. É o que acontece com as frutas, em que as sementes ficam dentro de uma polpa doce e deliciosa, que os animais procuram para se alimentar. A jabuticaba, por exemplo, é procurada pelas aves, pelos morcegos, pelos gambás, pelos macacos, pelo ser humano. Colhidas e levadas para longe, as frutinhas vão com as sementes, que caem e muitas vezes brotam onde caíram. 

Você encontra um pé de goiaba e imagina: Quem plantou? Pode ser que não tenha sido plantada de propósito, pode ser que a pessoa comeu a fruta e cuspiu a semente naquele lugar. Ou pode ser que a semente tenha sido trazida nas fezes de um passarinho ou outro animal. 

Os morcegos comedores de frutas são os mais importantes espalhadores de árvores da Mata Atlântica. Pegam frutas no meio da mata e levam para o campo, onde se dependuram no arame farpado, no mourão de cerca, numa árvore velha, e ali ficam se deliciando com a fruta e deixam cair o caroço, que brota e se transforma em mais uma árvore da mata. O trabalho que esses morcegos fazem, de reflorestamento, é tão ou mais importante que o trabalho dos passarinhos. 

Muitas vezes, na roça, você foi atravessar um pasto e depois ficou reclamando que sua roupa ficou toda grudada de carrapicho ou de picão. São as sementes dessas plantas, que pegaram uma carona nas suas roupas. Agora você vai ficar sentado na calçada, tirando as sementinhas grudentas, espinhentas. Jogou no chão? Pronto, a planta lá do meio do pasto conseguiu o que ela queria, fez você transportar as sementes dela para bem longe e quem sabe elas agora vão brotar onde você jogou, espalhando a espécie. 

Essas plantas que grudam semente na roupa das pessoas vivem de grudar as sementes no pelo dos animais no pasto. Por isto é difícil acabar com essas pragas, os animais levam as sementes para longe e essas plantas vão sempre tendo sucesso. 

Plantas que vivem na beira dos rios derrubam sementes flutuantes, que vão levadas para longe, longe, e um dia vão se encostar na margem e ali vão brotar e criar raízes, gerando uma nova planta. 

Cabe ao ser humano usar a sua inteligência para compreender a natureza, perceber que cada ser tem um papel no mundo e merece ser respeitado e admirado, jamais ser destruído.

 

 

quarta-feira, 20 de março de 2024

Corpo fechado




Houve um tempo em que trabalhei na direção da Escola Agrícola de Jacareí, estabelecimento que forma técnicos em agropecuária, onde já funcionou a Fapija.

A Escola Agrícola era muito grande, uma fazenda com benfeitorias, pastagens, um bom resto da Mata Atlântica... Só que para trabalhar sem verba seria melhor que a fazenda não fosse tão grande. Um dos problemas era a extensão das divisas: para cercar decentemente uma área tão extensa teríamos que gastar muito... Ainda mais que não havia como dividir as despesas com os confrontantes: uma avenida, uma escola estadual, uma estrada municipal, uma grande área da prefeitura e, no fundo, o leito do Rio Paraíba do Sul...

Mas finalmente saiu a verba! Vamos fechar a escola! Compramos os mourões, o arame farpado, grampos... Contratamos alguns homens e a cerca foi se estendendo reta, reta, uma beleza, o arame farpado esticadinho, brilhando no sol, atravessando o pasto, apontando para a mata e sumindo dentro dela...

Daí começou a chover, chover. De tarde, os dois homens encarregados da cerca, molhados e esbaforidos, vieram me procurar. Eu estava substituindo o diretor em férias. Estavam nervosos: Seu Paulo, o senhor precisa ver uma coisa que a gente achou dentro da mata. Uma coisa esquisita.

Fui, com chuva mesmo. Atravessamos os pastos atrás do campo de futebol, entramos pela silvicultura e chegamos no mato. Dentro da mata fechada, escura, de repente uma coisa muito bonita e solene: Um espaço varridinho, limpinho, chão batido de muitos passos. Nas beiradas desse círculo, flores, velas, fitas de várias cores... Nos nichos formados pelas grandes raízes, imagens de santos desconhecidos. Um oco numa árvore: dentro, outro santo. Um lugar de respeito: era um lugar de culto.

Os dois homens esperando uma decisão minha. Porque a cerca, se fosse prosseguir no seu caminho retilíneo, teria que cortar ao meio aquele terreiro ornamentado e limpo. O que é que a gente faz, Seu Paulo... E eu decidi: desvia a cerca para fora, invade alguns metros na área da prefeitura, é meio do mato mesmo, ninguém vai se incomodar. Começa o desvio um pouco antes do círculo, volta ao traçado um pouco depois. Assim este terreiro fica inteiro dentro da escola. Ah! E na cerca faz o ziguezague, aquela abertura por onde dá para passar gente, mas impede a passagem do gado. Por quê? Ora, se o pessoal está acostumado a vir fazer suas devoções aqui, vamos facilitar, para que obrigar as pessoas a passar por baixo do arame?

E assim foi.

No sábado de manhã (eu cumpria parte do horário no sábado) vem um senhor moreno, gordo, falar comigo. Apresentou-se, era o Pai de Santo responsável pelo terreiro no meio da mata.  Ele estava comovido. Agradeceu muito por termos respeitado aquele espaço sagrado, elogiou. Desculpou-se, disse que antes não sabia até onde ia a divisa da escola. Ficou feliz também por termos deixado a passagem na cerca. Eu agradeci os agradecimentos. E coloquei uma restrição: não pode edificar nada, nem uma cabaninha.

Ele se tornou um colaborador da escola, ajudando a tomar conta da mata, impedindo invasões, não deixando ninguém cortar árvores na beira do rio... E me convidou para ir tomar um café na casa dele, lá na Bica do Boi.

Fui. Um café gostoso com bolo de fubá. Depois, me perguntou se eu aceitava que ele e a esposa fizessem uma oração em minha intenção. Claro, até agradeço. A oração era, me pareceu, uma adaptação do Pai Nosso. Depois um cântico suave, bonito. Depois outras orações. Quando terminou aquela reza, eu saindo, conversando sobre plantas, flores, que eles tinham na varanda, ele me perguntou se eu sabia o que eles tinham feito. Não, não sei, estou achando que vocês fizeram uma reza em minha intenção, não é?

É. Mas não é só isso: agora o senhor está com o corpo fechado. Nada de ruim vai pegar no senhor, nunca. Não tem perigo.

Agradeci, o gesto deles foi bonito, comovente mesmo. Guardei a informação com carinho, sem intenção de descobrir até onde iria aquela força, sem duvidar nunca - e sem abusar nunca.

Às vezes, tenho conseguido caminhar com sossego no meio de vários tipos de tempestade. Então me sinto protegido por uma espécie de bondade. Talvez a bondade que pratiquei  lá no meio do mato da Escola Agrícola? Na hora, não senti que fosse bondade, senti que era justiça. Fiz o que era certo fazer.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Caminhando com o Pedro

 

Pedro com o Carlos e os alunos das Oliveiras, 1969


Já tínhamos feito o trabalho de carpintaria de serrar e martelar, construindo um bom chiqueiro no lado mais ensolarado do quintal. Então, na manhã de um sábado, fui com o Pedro, levando sacos de estopa, até a Vila Campineira, comprar uns leitões na casa do Rubens e do Guido Magalhães. Esses meninos tinham sido meus colegas no primário e ficaram alegres com nossa visita. Negociamos com o pai deles e trouxemos dois porquinhos e uma porquinha. Voltamos contentes, pela Vila Bela, para soltar os bichinhos na casa nova deles, que ainda tinha cheiro de serragem.

 Ainda naquela semana, fomos nós dois, mais o Bosco, até a Volta da Bananeira, que a gente ainda não conhecia, fomos levando a cabrita marrom, para deixar lá, na casa do dono do bode grande, para ela pegar cria. Demoramos para encontrar, erramos o caminho, tivemos que voltar um trecho e perguntar na Vila Esperança. No fim, deu certo. Chegamos de volta em casa já de noitinha.

Uma viagem que sempre eu fazia com o Pedro era para Pinda, de ônibus, para comprar farelo de arroz na máquina do Andrade. Tempo em que a agência da Pássaro Marron ficava na Expedicionários, em frente ao Brasília Lanches e à Banca do Seu Romeu. Na máquina de arroz, geralmente, não tinha farelo pronto, ficávamos vendo a máquina agitando o arroz integral, tirando a película bege, que virava farelo - e o arroz saía branquinho do outro lado.

Anos mais tarde, todos os irmãos já estavam moços, fizemos passeios inesquecíveis e cansativos. Julho de 1966, um sábado, jogos da Copa do Mundo, fomos para Tremembé. Uma aventura, pequena, mas uma aventura. Saímos de Coruputuba. Pegamos o ônibus azul em frente ao Pujol, levando lanches e refrigerantes. O Carlos, o Pedro, o Zaga, o Bosco e eu. Conhecemos a Basílica do Bom Jesus, a praça de árvores frondosas, fomos lanchar perto da fonte, tomamos a água milagrosa. Carlos levou o radinho de pilha. Acompanhamos o jogo em que Portugal ganhou da Coreia do Norte por 5 a 3. 

Voltamos a fazer um passeio magnífico foi em 1967. Para Campos do Jordão. Aí já estávamos morando em Pinda. Eu fui o cicerone, conhecia alguma coisa da cidade. Já sabia que os preços da alimentação ali eram muito altos. Por isso, levamos bastante comida. Frango assado, farofa boa, pães, latas de sardinha...

Subimos para Campos no bondinho das seis horas. Muita neblina. Só clareou tudo na estação de Lefévre, quando passamos para cima das nuvens. Céu azul lá em cima e um colchão de nuvens brancas debaixo da gente.

Em Campos, íamos comer debaixo dos pinheiros. Mas choveu e só o Carlos que tinha guarda-chuva. Fomos todos para um restaurante e pedimos coca-cola. Pedimos emprestados alguns pratos. E fomos desembrulhando os frangos, as sardinhas, a farofa e outros itens. 

Depois de bem alimentados, subimos o Morro do Elefante. Tempos e tempos nós ficamos olhando a  cidadinha lá embaixo. Parecia uma cidadinha de presépio. Carrinhos. Pessoinhas andando. Arvorezinhas... No topo do Morro do Elefante tinha um Santo Cruzeiro. Só isto, naquele tempo. 

Os anos se passaram muito depressa e nosso trabalho de professores nos levou por caminhadas diferentes. Enquanto eu andava pelo Porto Novo em Caraguatatuba, e pelo Rio Abaixo em Jacareí, o Pedro fez caminhadas pela Serra da Mantiqueira, em diferentes escolas. Andou quilômetros na sombra escura das araucárias, no Parque Estadual, lecionando numa escolinha muito longe de qualquer povoação. A cama de armar ficava dobrada atrás da porta durante as aulas. As crianças conversando, amigáveis, ele explicando, ditando lições, os alunos perguntando. Fora das paredes de tábua, o ruído da chuva nos pinheiros. Então acabava a aula, os alunos davam tchau, iam embora, ele ficava sozinho. No silêncio, só o barulho da chuva. Ia escurecendo, na mata escurece logo, hora de cozinhar o arroz na panelinha, no fogareiro. A medida de arroz era um potinho vazio de danone. Tudo certinho, a lanterna presa debaixo do braço esquerdo, a solidão por companhia. A noite quieta. O próximo som que ele ia escutar seria de manhã, quando as crianças chegassem com suas conversas e perguntas e risadas. Até lá, o silêncio, e as gotas da chuva. 



Mais um pacote grande de tempo rolou, e nós dois pudemos caminhar juntos na Serra do Mar, no meio da Mata Atlântica, entre Ubatuba e São Luiz. Tinha chovido na véspera e tudo agora estava azul e ensolarado, a mata brilhava. Na trilha, as botas não faziam barulho, tudo encharcado. De repente, uma arvorezinha se abalou e choveu debaixo dela. Era um esquilo, que pulou mudando de galho. Nós dois nos agachamos, paralisados. O bichinho também parou, os bigodes se agitando, as mãozinhas no peito, o nariz se movendo. Instante - e pulou num tronco caído, correu ao longo dele, muito rápido, em dois pulos trepou na outra árvore, sumiu-se na folhagem. O Pedro falou: Nossa, Paulo. 

Depois os anos se passaram, todos de uma vez só, e não deu tempo de fazermos a caminhada que uma vez começamos a combinar e nem terminamos de combinar direito. Que era de irmos a pé até Aparecida, conversando no caminho, rezando o terço, lanchando na beira da estrada, conversando de novo, comentando as muitas andanças que já tínhamos feito pelos caminhos deste mundo de Deus. Não deu tempo, Pedro, meu irmão. Mas caminhamos bastante.

Texto e fotos de Paulo Tarcizio


domingo, 7 de janeiro de 2024

UM MENINO SOB AS ÁRVORES


Já estava ficando escandaloso aquele negócio de toda quinzena sumir um porco da Escola Agrícola.  Era mais ou menos agendado: semana sim, semana não, um belo dia de manhãzinha havia um porco de menos no chiqueiro. Depois de algum tempo os ladrões ficaram mais calmos e passaram a matar, limpar e esquartejar o bicho na escola mesmo, deixando para trás apenas a poça de sangue e algum miúdo inaproveitável.

Aquilo deixava tenso o pessoal da direção. A gente começava a suspeitar de todo mundo. Parecia, aos nossos olhos desconfiados, que não eram todos que estavam chateados... A direção tinha que fazer B.O. na polícia. E fazia, mas ficava só nisso. O B.O. servia só para instruir o processo de pedir baixa no inventário. Eu ouvia coisas assim: Fazer o quê, Não tem jeito, A escola está muito dentro da cidade... Ficava injuriado com aquele conformismo. Houve colegas que me disseram: Paulo, não esquenta muito a cabeça com isto, não. Você já passou na primeira fase do concurso para diretor, logo vai embora, não entra nessa encrenca, do mesmo jeito que tem gente boa, tem gente que não presta. E acrescentavam: Aqui na Agrícola sempre foi assim, sempre vai ser.

Isto que me diziam não adiantava, continuei achando que eu ia resolver o caso. Responsável pelo noturno, comecei a fazer uma grande ronda pela escola, antes de ir para casa às vinte e três horas. Com o farol alto, ia fazendo o carro percorrer todos os caminhos possíveis: atrás da lavanderia e da cozinha, em volta do campo de futebol, entre o galinheiro e os chiqueiros... Então pegava a estrada da horta, descia o morro em direção à silvicultura, pomar, ia até os estábulos, voltava por dentro do pasto, pegava a alameda dos ipês, ia pelo meio deles até ver o vulto encostado numa árvore... Opa, o que é aquilo?

Encostado na árvore, um vulto embrulhado num cobertor. Ia se levantando, saindo. Encostei o carro, abri a janela, reconheci: Toninho, que isso? O que você está fazendo aqui? Você está bem?

Estava bem demais. Quando entrou no carro, precisei apoiá-lo e vi que o cobertor estava gelado... Também, era junho... Ele destampou a falar, falava e me explicava: estava conversando com as árvores. Incrível como elas respondem. É uma coisa maravilhosa o jeito que elas conversam com a gente, nossa! As coisas que elas falam! Não dá para contar para todo mundo, tem gente que não entende, o senhor eu sei, é diretor, coisa e tal, mas o senhor é pessoa legal, o senhor entende: eu estava aqui, olhando as estrelas, está frio, o céu cheiinho de estrelas e eu estava aqui escutando o que as árvores estão falando, falando comigo... O senhor também gosta de andar debaixo das árvores, que eu já vi o senhor andando lá, olhando, o senhor também fala com elas.

Na diretoria o café da garrafa ainda estava meio quente, um restinho, ele tomou, sentou-se, continuou falando, excitado, emocionado... Eu ouvia, olhando para ele, pensando nas desconfianças dos inspetores, os armários dos alunos sempre vasculhados: vai que um deles guarda qualquer porcaria...

Toninho diminuiu o ritmo, cansado, talvez o efeito das árvores estivesse passando... Pediu para usar o banheiro. Primeira vez que um aluno usou o banheiro da diretoria. Ouvi que se lavava, longamente. Saiu renovado, agora já meio constrangido, envergonhado – e certamente um pouco temeroso. Olhou para mim: e eu era o diretor. Pediu desculpas... Não falou mais de estrelas nem de árvores. Foi para o dormitório.

A mãe veio buscá-lo poucos dias depois, ele ia se transferir para uma escola da sua cidade, a família achou que não estava dando certo esse negócio de estudar longe, morar longe, ficar um tempão sem ver o seu pessoal...  

Continuei pensando muito nele toda vez que passava na alameda dos ipês. Continuo pensando nele, agora que eu passo por ruas escuras e vejo meninos no sereno... Mas estes meninos parece que não querem conversar sobre árvores, não querem falar de estrelas.

O que eu pretendia com os faróis iluminando os caminhos da Escola Agrícola? Procurava culpados, mas encontrei uma pequena vítima. Se encontrasse os culpados pelo furto dos porcos, o que eu iria fazer? Dar um tiro imaginário: nunca tive arma... Encontrei um dos nossos jovens sob os ipês, o mínimo seria tirá-lo do relento, ouvir suas poesias loucas... E dividir a preocupação com a família, como acabei fazendo.

Quanto aos porcos, continuaram a desaparecer regularmente. Teria alguma noite o ladrão passado sob os olhos do menino das árvores?  Pode ser, nunca soubemos. O que um teria pensado sobre o outro?

Um mês depois, fui embora da Escola Agrícola, ia ser coordenador em Santa Branca, enquanto aguardava as provas da segunda fase do concurso para diretor. O último lugar que visitei antes de sair foi a alameda dos ipês, entre os pastos e a suinocultura. Era julho, de frio e céu azul. A alameda tinha virado um luminoso túnel amarelo, dourado: flores nas árvores, flores descendo no vento, flores cobrindo o chão como um tapete.