Todo mundo quer progresso, quer que a cidade cresça. A cidade
tem que crescer, dizem todos os eleitores e todos os candidatos de todos os
partidos. Então, a cidade vai crescendo, loteamentos vão sendo rasgados, o
capim é raspado, os arbustos cortados, ruas e postes vão invadindo os recantos
sossegados. O tatu é o primeiro que se dana, o próprio pessoal das obras mais pesadas
já aproveita que está com a enxada pronta e vai descobrindo as covas, volta de
noite para colocar armadilha ou então corre atrás do bichinho e pronto: mistura
para a janta, ou para beliscar com a cerveja.
Coruja buraqueira aproveitava os buracos do cupinzeiro. Em volta
ficava cheio de ossinhos dos ratos que ela comia. Tiraram os cupinzeiros, o
pasto vai virar lote, corujinha não sabe para onde vai, sentou no poste novo,
debaixo do sol forte. Só sabe se virar de noite, assim de dia fica com jeito
bobo, de olhinhos arregalados. Ela não é que nem a suindara, que já é bicho
civilizado, mora há muitas gerações na torre da igreja, voa de noite procurando
o que comer. Senta no alto do edifício e faz seus barulhinhos que só escuta quem
estiver sem sono às quatro da madrugada.
Gambá também vai acabar, jeitão mole dele, de dia parece bêbado,
fácil de alcançar, facinho de tacar uma paulada na cabeça dele. Está morrendo,
mas escancara a boca de muitos dentes, quer morder, morde só o ar, morde o
chão, era uma vez. Mas tem gambá que vive há séculos dentro da cidade, no
centro, descobriu que ainda tem casa de quintal grande, tem vão entre dois
muros, ali junta folha seca, lá dentro ele dorme de dia com a barriga para
cima. Sai de noite procurando fruta, resto de comida. Sobe no muro de novo se
tem cachorro.
O gambá vinha passando por cima do muro, eu só via a silhueta
dele contra a luz da rua. Então outra silhueta veio em sentido contrário, era o
gatão, chefe do bairro, que até os cachorros respeitavam. Fiquei olhando os
dois bichos se aproximando, o gambá e o gato. Na última hora o gatão desceu,
deu passagem para o gambá, que nem diminuiu a marcha.
Daí tem gente que defende a Natureza, veste uma camisa lutando
pelo Boto, pela Baleia, pela Onça Pintada. Faz campanha. Faz campanha para
defender tudo que está longe, mas não repara em volta, perto. De carro,
atropela o último gambá que atravessava a estrada, porque o engenheiro não
planejou uma passagem por baixo para que os animais possam ir de um lado para o
outro da Mata sem se arriscarem. Na estrada de Ubatuba minha aluna da Fasc, sem
querer, é lógico, atropelou uma suçuarana, de noite.
Mas parece que ninguém acredita que somos um bicho que extermina
os outros bichos. Vai sobrar nenhum bicho livre, só vão sobrar os que abaixam a
cabeça e topam viver segundo as nossas regras, nos chiqueiros, currais e
gaiolas.
No documentário “O Rio das Amazonas”, Paulo Vanzolini estava
contando para o barqueiro que o peixe-boi está em extinção e o rapaz perguntou:
“Como assim?” E o zoólogo-compositor explicou: “O peixe-boi está acabando, não
vai ter mais!” Então o barqueiro deu uma risada gostosa, dessas que o pessoal
simples usa para debochar de gente da cidade e falou: “Que isso, doutor! Tá
acabando nada, ontem mesmo eu matei dois!”
Assim, por enquanto, a melhor coisa que o gambá faz é mesmo
aproveitar seu lugarzinho, ficar de barriga para cima. Enquanto dá. Logo não vai
dar mais, os edifícios modernos não vão oferecer cantinho de muro cheio de
folha seca para bichinho nenhum. E o tatu, e a coruja buraqueira? A seriema que
andava no campo com jeito solene? Vai acabar tudo, logo os lugares desertos vão
estar impinhocados de gente, todo mundo reclamando que não tem Natureza na
cidade.
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da
Silva Marcondes
Foto: Flávio Brandão (peguei
em arrobaxyz.bloguepessoal.com)