Minha beata Santa
Catarina, vós que sois digna e clara esposa do Divino Espírito Santo, que
entrastes pelas portas de Abrahão e abrandastes quatrocentos homens todos
bravos como leões e com palavras de justiça conseguistes abrandar os seus
corações, abrandai o coração dos meus alunos para que se tornem mansos como
cordeiros. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Oração a Santa Catarina, rezada por alguns
professores antes de ir para a sala de aula
Está
bem, desculpem, não é promoção automática não. Como se chama mesmo? Seria
progressão continuada?
Eufemismos à parte, a
pedra de tropeço da educação pública nas últimas décadas é esta: a promoção
automática. Principalmente para a segunda metade do ensino fundamental. As
crianças de primeira a quarta séries são menos atingidas pela praga. Porém os
adolescentes rapidamente descobrem: não
repete.
E é assim: não repete, aconteça o que acontecer,
estude ou não estude, compareça ou não compareça às aulas, faça ou não faça a
tarefa, traga ou não traga o material, o adolescente sabe: não repete. Quer
dizer: tanto faz.
Ingressamos na
preguiçosa era do tanto faz e tiramos do adolescente o seu motor, que é o
desafio. Tiramos o desafio do estudante, não há motivo para estudar, para
cumprir, para respeitar regras...
O professor, que no
começo falava mal da promoção automática, foi também se acomodando à situação.
Percebeu que é melhor deixar rolar.
Antes, o professor ficava magoado, percebia aquela coisa acontecendo com seus
alunos, reparava: encaminhado para as aulas de reforço, o aluno fraco não comparecia,
desprezava aquela ajuda, encarava a ajuda como um castigo... E o professor
reparava de novo: o aluno desprezava a ajuda, tão necessária, e daí? Daí nada, não repete... O aluno passava do mesmo
jeito. Tanto faz!
Ainda antes de ser
decretada a promoção automática, esta já existia, no entender dos delegados de
ensino que queriam auxiliar o governo a obter melhorias estatísticas. Desde
aquele tempo, os professores perceberam que o melhor é só dar notas azuis, porque estas não precisam
ser justificadas. Ah, mas se der notas
vermelhas! Tem que preencher tanta planilha, apresentar tanto comprovante
de que o professor se comportou direitinho, apresentou planejamento, preencheu
certinho, sem uma rasura, sem um errorex,
o diário de classe... Nossa! O melhor mesmo é dar logo uma nota boa, sem parar
para pensar no quesito merecimento.
Um professor me diz:
“Eu faço força para o aluno se interessar pela aula, falta só eu dançar em cima
da mesa, ninguém liga. No noturno tem uma turma que fica jogando truco no fundo
da sala. Alguns entregam prova em branco e, quando sai a nota baixa, vêm tirar
satisfação, que eu devia considerar... Mas, na verdade, não se preocupam, já sabem
que não repete. Bem que eu queria
ensinar, mas como ensinar quem nem ao menos comparece? Ou, quando comparece, nem
olha para o meu lado?”
O mesmo professor me
conta: Olhou para a classe e viu uma mocinha desconhecida. Perguntou: – Ué, aluna nova? Você veio de onde? E a
menina: – Qualé, teacher, sou aluna desde
o começo do ano, pode ver, o meu nome é tal, taí na chamada, não tá? E o
professor: – Mas eu nunca vi você na
classe! Nossa, é mesmo, o seu nome está aqui no diário, só tem falta, você
nunca veio, já é outubro, você já repetiu!
Mas a menina não se
estressou: – Ô teacher, que isso, é só o
senhor dar um trabalho pra tirar as faltas!
A indiferença dos
alunos pelos estudos tem, nos últimos anos, se manifestado de forma tão
arrogante que o mínimo respeito pelos professores vai desaparecendo, e a
situação em sala de aula se torna caótica. Nas classes de adolescentes, alguns
professores entram com medo, já não se sentem com autoridade suficiente para
mandar, resta-lhes pedir humildemente, às vezes negociar. Se o mestre consegue
obter a simpatia de um chefe de gangue, é através deste que as ordens são passadas
aos alunos. Evidente que não podemos responsabilizar apenas a promoção
automática por esse estado de pré-criminalidade na escola. Mas a certeza do
“não repete” veio se juntar aos demais motivos que levam os alunos a
desobedecer, desrespeitar, avacalhar, agredir...
Esses professores, desrespeitados e
diminuídos, já desistiram de levar queixas aos diretores, nem pensam mais
nisto. Para quê? Para escutar frases do tipo:
1-
Precisa ter mais paciência;
2-
Melhor não enfrentar;
3-
Olha que a mãe dele vai na
delegacia;
4-
Mas será que não é você que precisa mudar o seu jeito?;
5-
Mas não se pode exigir muito
deles;
6-
Tenta falar de novo com ele,
mas com jeitinho;
7-
Você tem que entender que
ele está em fase de desenvolvimento...
Já foram
classificados de “defensores da cultura
da reprovação” os que se metem a fazer tais análises. Engano. Não é isto.
Todo bom professor detesta reprovação de alunos. Todo bom professor se sente
realizado quando seus alunos são promovidos para a série seguinte. Desde que
eles passem de ano porque demonstraram competência, não porque iam passar de
qualquer jeito mesmo.
Enquanto isto, os
filhos da elite continuam ralando nas
escolas que exigem esforço, aplicação, realização. Estão se preparando para
continuar ocupando os cargos de mando, as profissões mais disputadas, as
funções melhor remuneradas, os papéis de maior prestígio social. Estão tendo o
mesmo tipo de educação exigente que tiveram, no passado, os atuais ocupantes de
cargos de mando, aí incluídos os responsáveis pelas decisões políticas sobre
educação.
Quanto aos filhos dos
trabalhadores, estudando nas escolas onde não
repete, vão adquirindo uma visão de si muito positiva, a autoestima cresce,
infla, infla. Isto pode ser bom no momento. Mas o triste é que a visão de si que
adquiriram é falsa, o ego inflado vai estourar, espetado pelo espinho do
primeiro mau resultado num concurso, num vestibular, numa entrevista para
emprego... Ah! Teria sido melhor para os filhos dos trabalhadores que tivessem
passado por uma escola que exigisse empenho, que valorizasse o esforço
produtivo, que ensinasse o sabor da vitória obtida pela seriedade e determinação.
E os governos, não
vão fazer nada? Vão sim, quando se tornarem muito fortes as queixas dos empresários
que, cada vez mais, se ressentem da falta de trabalhadores minimamente
responsáveis, cumpridores de horários e de compromissos, dignamente alfabetizados,
capazes de ler e entender os manuais de procedimentos. Capazes, quem sabe (aí
já é um sonho?), capazes de redigir esses manuais.
Eu também já defendi
a promoção automática.
Eu acreditava numa
escola tão boa, com tantos recursos, que nenhum aluno conseguisse passar por
ela sem aprender. Nem que fosse por osmose, o aluno aprenderia muito numa
escola com muitas atividades produtivas. Aluno atrasado seria encaminhado para
atividades de reforço, de frequência obrigatória. As classes teriam no máximo
vinte e cinco alunos, o professor ganharia tão bem que poderia se dedicar
exclusivamente para o trabalho em uma determinada escola. Fora dos horários de
aula, o professor ficaria em seu gabinete, tanto preparando aulas e corrigindo
exercícios, como atendendo os alunos em dificuldade.
Ah! E a escola teria
Orientador Educacional, cargo que não consta mais dos planos dos governos, nem
dos sonhos dos sindicatos, apesar dos fracassos formativos que acontecem nas
escolas todos os anos. Fracassos que só chegam à mídia quando assumem o nível
de desgraças, tragédias.
E também já inventei
a minha promoção automática.
Houve uma época em
que eu via alunos serem retidos por motivos tão bobos! Em outro lugar deste
blog conto a história do Jofre ("Quem serve para ser professor"), que foi reprovado no quarto ano do curso
normal porque não sabia o que é mancinismo. Também já vi, faz tempo, aluno ser retido em História porque não sabia algum
detalhe da vida de um dos reis da França. Ou ser reprovado em Geografia por ter
errado a ordem dos afluentes do Rio Amazonas.
Quando comecei a
lecionar, final da década de sessenta, as crianças de primeira série repetiam
de ano. Era um sistema tão ingrato, tão ineficiente! Quem repetia a primeira
série era obrigado, no ano seguinte, a começar novamente a cartilha. Assim,
quem tinha dificuldade em ler e escrever as sílabas mais complexas – que
ficavam no final da cartilha – nunca chegava a estudá-las, pois, derrubado
antes disto, no ano seguinte não chegava a enfrentá-las: começava o estudo na
mesma lição que ia ocupar as cabeças de seus novos coleguinhas.
Quem repetia de ano
ia ficando cada vez maior, em comparação com o restante da classe. Assim é que
toda classe de primeira série tinha um enorme meninão, muitas vezes já com
quatorze anos, no meio dos pequerruchos. Aquilo era humilhante. E os humilhados
podem adotar outras posturas diante da vida. Era comum que alguns partissem
para a violência contra os pequenos, ou começassem a ensinar besteira para
eles. Também era possível que aquele meninão, ou aquela moçona, se tornasse uma
espécie de monitor da classe, ajudante da professora, colaborando em tomar
lições das crianças, em ver os cadernos.
Fazendo estágio na
classe de primeira série da Tatá[1],
acompanhei a aula sobre a lição da Macaca. Era a cartilha que toda escola usava.
A lição começava com uma preciosidade assim: “A macaca é má”. Abaixo daquela
frase, e de mais uma ou duas frases igualmente inconsequentes, vinham três
pequenas colunas de palavras formadas somente por sílabas bem simples. Uma
delas era a palavra “mania”. A Tatá, alegrinha, querendo introduzir um pobre ar
de Escola Nova naquela escola antiga, perguntou: quem sabe o que é mania? O
meninão da classe da Tatá era o Manuel, que todo mundo chamava de Mané. Pois
ele falou: Eu sei, Professora. E ergueu os dois braços, fazendo com eles uma
curva, encostando as pontas dos dedos da mão direita nas pontas dos dedos da
mão esquerda, fechando um círculo: “Eu sei, professora, mania é um canão assim,
que nem o que o pessoal tá enterrando lá atrás da fábrica.” Claro, estava se
referindo às manilhas da rede de captação de água do Paraíba.
Noutro dia, outra
aula, agora sobre Tiradentes, a Tatá perguntou quem sabia alguma coisa sobre
esse herói. E o Manuel interveio, que sim, que ele sabia quem era Tiradentes.
Era um homem que morreu enforcado na árvore da beira da represa, o pai dele
contou. Foi na represa perto do chalé, o primeiro tanque.
Nessas ocasiões a Tatá
ficava muito vermelha, não sabia se ria ou se chorava, diante das tiradas do
meninão da classe. Sendo que as outras professoras também tinham, cada uma, o
seu meninão ou a sua moçona, chamados de cavalão, cavalona, marmanjo...
Anos mais tarde,
quando me tornei diretor de escola, inventei umas regrinhas para evitar esse
tipo de constrangimento. Criança repetente de primeira série tinha que, no ano
seguinte, continuar a cartilha a partir de onde tinha parado – e não mais
recomeçar tudo desde a primeira lição. Isto eu implantei na Escola Benedita
Freire de Macedo em 1980, muito antes do Governo pensar em inventar o ciclo
básico. Também inventei que, no primário, quem começasse a criar bigodinho ou
despontar os seios não podia repetir de ano. As professoras adoravam, isto
acabava com os meninões e moçonas do fundo da classe.
Então – isto anos
mais tarde, na Escola Ismênia – o Haroldo, da terceira série, acabou se
beneficiando, mas não acreditou. É que ele todo ano abandonava a escola em outubro. Não sei por que
motivo, sempre que o verão ia chegando o Haroldo pulava o muro e não aparecia
mais. Voltava no começo do ano seguinte, para matricular-se de novo na terceira
série. Pois aconteceu que o Haroldo tinha sumido de novo e, no começo do ano
seguinte, eu decretei: O Haroldo passou para a quarta série, pode colocar na
lista. Não veio fazer matrícula? Azar dele, tanto faz, vai para a quarta! Tive
que ir até a casa dele, era janeiro. Contei: – Haroldo, você passou de ano! E
ele: – Não, professor, não passei não. – Passou sim! – Não passei não... Mas
ele acabou sendo convencido. Foi para a escola, frequentou a quarta série pela
primeira vez na vida, de peito estufado. E passou para a quinta e não parou
mais.
Portanto, não somos
da cultura da reprovação não. Só achamos que, para passar de ano, precisa o
aluno fazer força, conquistar a promoção como toda promoção precisa ser
conquistada: com esforço, com empenho. E não de mão beijada, numa escola que não repete.
***
Texto de Paulo
Tarcizio da Silva Marcondes
No livro “Aconteceu
na Escola”
Imagem: Santa Catarina de Alexandria
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