O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 13 de março de 2020

A Vó


Da esquerda para a direita, no fundo: Minha avó materna Ana Emília, minha mãe Maria Tereza e meu pai, o professor Francisco Fonseca Marcondes.
Na frente, os meus irmãos José Pedro, Luiz Gonzaga, Francisco Carlos e Ana Clara.
E eu, cadê? Ora, no colinho da mamãe!
Ainda não tinham nascido: João Bosco, Maria Auxiliadora, Maria Salete e Ritinha.
Foto em Aparecida, em 1948.


Estava escurecendo, mas não era hora de acender a fogueira de São João, e as lâmpadas do quintal ainda estavam apagadas. O vulto de uma pessoa baixinha, troncuda, de capuz, deslizava devagar no quintal, entre as árvores. Fui ver, era a vó, com uma vara. Parava e dava uma surra em cada laranjeira. Distribuiu surras para todas, desde as laranjeiras velhas de perto da chaminé, até os pés de  laranja-bahia do fundo do quintal. Rezando alguma coisa. Depois me explicou, era para dar laranjas doces.
Aquilo era para acharmos esquisito? Era para darmos risada, comentando entre os irmãos? Não sei, mas não demos risada não. Até fomos acompanhando, mostrando algum outro pé de laranja, sugerindo também um limoeiro, tudo já na quase escuridão, com dó da velhinha que guardava segredos da escravidão.
E era branquinha, os cabelos brancos lisinhos, sempre em coque, só que as histórias que sabia eram histórias de cativos judiados, vingados pelas doenças e outras desgraças que atacavam os senhores brancos, que morriam de coisas feias. Contava as vozes que ecoavam nas noites de São Bento do Sapucaí, no escuro das araucárias, no vento: “No meio de três pinheiros, três barris de dinheiro!”. E o fazendeiro mau, que mandou surrar e matar o escravo bom e enterrar, e plantar muda de laranja por cima. A laranjeira cresceu, deu frutos bonitos. A sinhazinha colheu a laranja, mandou descascar e cortar, era só sangue por dentro, escorreu na roupa nova da mocinha.
Vó! Eu perguntava mais coisa. Devia ter perguntado mais. Perguntei pouco. Nunca perguntei por que foi que ela e o vovô Bento se separaram, por que o vovô ficou morando em Taubaté para sempre e ela ficou para sempre morando com a gente, com mamãe, papai e todas as crianças, trabalhando muito, igual uma escrava mesmo, no fogão e no tanque.
Perguntei coisa boba, curiosidade, viagens dela com vovô, na mocidade, acompanhando tropa de burro de São Bento para Taubaté, pousando em rancho, topando com sucuri, essas coisas. O que ela respondeu de bom para o resto da minha vida eu nem tinha perguntado, ela já foi ensinando. Era o jeito de matar o frango, de escaldar, depenar, limpar, abrir, tirar a gosma da pele com limão e fubá, até fritar, ou assar, ou refogar, centenas de jeito, até servir na mesa para a família inteira. E cuidar do porco e fazer com ele tudo isso também, só que com mais barulho, mais sangue e aprendendo a ficar insensível diante dos olhos puros do animal que tinha criado amizade com a gente, e agora ia virar nossa comida.
Ralhava comigo e meus irmãos só quando invadíamos a área de privacidade dela. “Cadê meu cepo?” ‒ Era porque tínhamos pegado o toco e levado para o fundo do quintal, para brincar de filme, o índio tinha que fazer tocaia contra o mocinho. E o cepo era necessário para ela. Baixinha, não alcançava a torneira do tanque, para lavar nossa roupa.
“Mexeram nas minhas mangas!” ‒ Alguém tinha revirado a cômoda, em busca das mangas que ela guardava no meio das roupas, esperando amadurecer. Nisso ela caprichava, levantava cedinho, ia fazer uma pequena colheita debaixo do pé de manga-espada, recolhia as mangas de vez que tinham tombado de noite, levava para o quarto.
Nas tempestades feias, catava brasa no fogão, punha para queimar a palma benta da semana santa mais recente, saía pela casa rezando a salve-rainha, cobrindo os espelhos...
A mãe brigava com a gente e queria bater. Ela nos acolhia na saia comprida, protegia. Mas quando a mãe brigava com ela, todos nós corríamos para o lado da mãe, que fingia desmaio, e a vó ficava sozinha, quieta, rezando.
Ah, Dona Ana! Dona Ana Emília! Donana! Todo domingo, na missa da tarde, de mantilha preta, terço na mão, balbuciando orações... ia devagarzinho pela rua de areia, para a Capela entre os coqueiros. Na volta, assistia um pouco de televisão, antes de tomar café para dormir. A TV nós compramos quando eu tinha uns dezoito anos. Perguntei a ela: Vó, é assim mesmo que a senhora pensava que era a televisão? Ela disse que não. Pensava que era fininha igual um quadro, que a gente pendurasse na parede.
Hoje eu penso, nossa, hoje em dia ela acertou.
Teve um AVC, ficou doente para morrer. Fomos fazer a mudança, esvaziar o quartinho dela, tirar o nicho de Santa Terezinha, que tinha tantos outros santos! tantos restos de outros santos, irreconhecíveis, flores murchas, pedaços de palma benta... Quando fui esvaziar as gavetas da cômoda, ah, cheio de manga estragada, ela guardou para amadurecer, mas coitadinha, esquecia...
A cabecinha branca é um lencinho de saudade, a cabecinha branca espiando por cima do portãozinho, debaixo da latada de primavera, espiando para ver se o neto já vinha voltando da cidade, se já vinha caminhando desde lá do Portão da fazenda, tendo descido do ônibus, se já tinha terminado as aulas do ginásio ‒ do ginásio que ela nunca chegou a conhecer, prédio onde ela nunca adentrou, que ainda está aqui na esquina da ladeira que desce para o Bosque...
Quem não está mais aqui é ela, faz mais de cinquenta anos que ela não está mais aqui, a Vó, que talvez nunca tenha entendido direito este mundo, que os netos foram desbravando e cujos pedaços foram contando para ela, aos poucos, para que ela pudesse ir montando um quebra-cabeças: o mundo moderno, sem tropeiros, sem cativos, sem senhores, sem sinhazinhas, sem laranjeiras...
Agora já sou mais velho do que ela ‒ e os meus cabelos são mais brancos do que os cabelinhos dela. Mas não adianta eu ficar no portão esperando, não vai ter ninguém para chegar da escola.
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Texto: Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: Lambe-lambe em Aparecida, 1948

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