Narração
de um pastor provençal
Conto de ALPHONSE DAUDET
Tradução de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No
tempo em que vigiava os rebanhos no alto do Luberon[i], acontecia de passar
semanas inteiras sem ver ninguém, sozinho nas pastagens com meu cão Labri[ii] e minhas ovelhas. De tempos
em tempos, o eremita do Mont-de-l’Ure[iii] passava por lá
procurando símplices[iv]
ou então eu via o rosto enegrecido de algum trabalhador da mina de carvão do
Piémont; mas eram pessoas simples, silenciosas por causa da solidão, tendo
perdido o gosto de conversar e não sabendo nada do que se falava nas cidades e
nas vilas. Por isto, a cada quinze dias, quando eu ouvia, no caminho que sobe,
os chocalhos da mula da nossa fazenda trazendo as provisões da quinzena, e eu
via aparecer pouco a pouco, acima do barranco, a cabeça atenta do nosso pequeno
ajudante, ou a boina vermelha da velha tia Norade, eu ficava verdadeiramente muito
feliz. Queriam me contar as novidades lá de baixo, os batismos, os casamentos;
mas o que me interessava de fato, era saber o que acontecia com a filha dos
meus patrões, nossa senhorita Stéphanette, a mais bela que havia em dez léguas
em torno. Sem deixar transparecer demais o meu interesse, eu me informava se
ela ia muito às festas, aos saraus, se apareceram a ela novos pretendentes; e
aos que me perguntavam o que essas coisas poderiam interessar a mim, pobre
pastor da montanha, respondia que eu tinha vinte anos e que essa Stéphanette era
o que eu tinha visto de mais belo em toda minha vida.
Ora,
num domingo em que eu estava esperando os víveres da quinzena, aconteceu que
eles não chegaram e já estava ficando tarde. De manhã, eu me disse: “É por
causa da missa solene”; depois, perto do meio-dia, veio uma grande tempestade,
e pensei que a mula não se pôs a caminho por causa do mau estado dos caminhos.
Enfim, ali pelas três, o céu estando lavado, a montanha luminosa de água e de
sol, ouvi, no meio do gotejamento das folhas e do transbordamento dos córregos
inflados, os chocalhos da mula, tão alegres, tão sonoros como um grande
carrilhão de sinos em dia de Páscoa. Mas não era o pequeno ajudante, nem a
velha Norade quem a conduzia. Era, adivinha quem!... nossa senhorita, meus
meninos! nossa senhorita em pessoa, sentadinha muito ereta entre os sacos de
vime, toda rosada pelo ar das montanhas, pela friagem da tempestade!
O
ajudante estava doente, e a tia Norade em férias com suas crianças. A bela
Stéphanette foi me contando, enquanto descia da mula, e além disso ela chegou tarde
porque se perdeu na estrada; mas ao vê-la tão bem endomingada com suas fitas e
flores, a saia brilhante e suas rendas, ela tinha mais o ar de ter se atrasado
em alguma dança do que de ter procurado seu caminho no meio do mato. Oh a
pequena criatura! Meus olhos não podiam deixar de olhá-la! É verdade que jamais
eu a tinha visto de tão perto. Algum dia de inverno, quando os rebanhos já tinham
descido nos apriscos e eu entrava à
tarde na casa da fazenda para tomar a sopa, ela atravessava a sala vivamente,
sem falar nada aos serviçais, sempre arrumada e um pouco orgulhosa. E agora eu
a tinha ali diante de mim, apenas para mim; não era de perder a cabeça?
Quando
tirou as provisões da cesta, Stéphanette se pôs a olhar curiosamente em redor.
Erguendo um pouco sua bela saia de domingo, que poderia se danificar, ela
entrou no abrigo, querendo ver o canto em que eu dormia, o leito de palha com
pele de carneiro, minha grande capa pendurada na parede, meu cajado, minha
espingarda. Tudo aquilo a divertia.
“Então,
é aqui que você vive, meu pobre pastor? Como você deve enjoar de ficar sempre
sozinho! O que é que você faz? No que você pensa?”
Eu
queria responder: “Em você, senhorita” e não estaria mentindo; Mas minha
atrapalhação era tão grande que não pude falar uma só palavra. E creio bem que
ela percebeu, e que a malvada sentiu prazer em redobrar meu embaraço com sua
malícia...
E
ela mesmo, ao me falar, tinha bem o ar da fada Estérelle[v], com o belo sorriso, a cabecinha inclinada e uma ansiedade
em se ir, o que fazia de sua visita uma aparição.
‒
Adeus, pastor.
‒
Saúde, senhorita.
E
ei-la que partiu, levando as cestas vazias.
Quando
desapareceu no caminho inclinado, pareceu-me que os cascalhos, rolando sob os
cascos da mula, tombavam um a um sobre o meu coração. Eu os ouvi por muito
tempo, muito tempo; e até o final do dia, fiquei como sonâmbulo, não ousando me
mover, de medo de espantar o meu sonho. Quase noite, quando o fundo dos vales foi
se azulando e as ovelhas, balindo, se empurravam umas contra as outras para reentrar
no abrigo, ouvi que me chamavam lá de baixo, e vi aparecer a nossa senhorita,
não risonha como ainda há pouco, mas trêmula de frio e de pavor, toda encharcada.
Parece que no fundo da colina ela encontrou o Sorgue[vi] engrossado pela chuva da
tempestade, e, tentando forçar a travessia, ela tinha corrido o risco de se
afogar. O terrível, é que àquela hora da noite não se podia pensar em retorno à
fazenda; pois o caminho para a travessia nossa senhorita não conseguiria jamais
encontrar sozinha, e eu não podia abandonar o rebanho. Essa ideia de passar a
noite na montanha a atormentava muito, sobretudo por causa da inquietude da
família. Eu procurei tranquilizá-la da melhor maneira que podia:
‒
Em julho, as noites são curtas, senhorita... É apenas um momento ruim.
E
acendi depressa uma grande fogueira para secar seus pés e seu vestido,
encharcado da água do Sorgue. Depois, coloquei diante dela leite, queijo; mas a
pobre pequena não pensava nem em se aquecer, nem em se alimentar, e de ver as
grossas lágrimas que desciam de seus olhos, eu também estava a ponto de chorar.
No
entanto, a noite chegou completamente. Não restou sobre a crista das montanhas
mais que uma poeira de sol, um vapor de luz do lado do poente. Eu quis que nossa
senhorita entrasse para repousar no abrigo. Tendo estendido sobre a palha
fresca uma bonita pele bem nova, eu lhe desejei boa noite, e fui me assentar
fora, diante da porta... De repente, a cortina do abrigo se abriu e a bela
Stéphanette apareceu. Ela não podia dormir. As ovelhas faziam ranger a palha ao
se mover, ou balindo em seus sonhos. Ela achou melhor vir para perto do fogo.
Diante disso, joguei minha pele de cabra sobre seus ombros, aticei as chamas, e
ficamos sentados juntos, sem conversar. Se você já passou a noite sob as
estrelas[vii], você sabe que, quando
dormimos, um mundo misterioso desperta na solidão e no silêncio. É então que as
fontes cantam muito mais claramente, e os charcos acendem pequenas chamas.
Todos os espíritos da montanha vão e vêm livremente; e há no ar das pastagens
ruídos imperceptíveis, como se estivéssemos ouvindo os ramos crescendo, a erva brotando.
O dia, é a vida dos seres; mas a noite, é a vida das coisas. Quando não se está
acostumado, dá medo... Por isto, nossa senhorita estava toda trêmula, e se
apertava contra mim ao menor ruído. Uma vez, um grito longo, melancólico,
partiu da lagoa que brilhava mais abaixo e subiu até nós, ondulando. No mesmo
instante uma bela estrela cadente deslizou por sobre nossas cabeças, como se
aquele lamento que acabávamos de ouvir estivesse portando uma luz.
‒
O que que é isso? me perguntou Stéphanette em voz baixa.
‒
Uma alma que entrou no paraíso, senhorita; e fiz o sinal da cruz.
Ela
se benzeu também, e ficou um momento com a cabeça baixa, contrita. Depois me
disse:
‒
Então é verdade, pastor, que vocês são feiticeiros, vocês pastores?
‒
De jeito nenhum, nossa senhorita. Mas aqui nós vivemos mais perto das estrelas,
e nós sabemos o que acontece melhor que as pessoas lá de baixo.
Ela
ainda estava olhando para cima, o queixo apoiado nas mãos, envolvida na pele de
carneiro, como um pequeno pastor celeste:
‒
Mas são tantas estrelas! Que lindo! Nunca eu tinha visto tantas... Será que
você sabe os nomes delas, pastor?
‒
Mas sim, senhorita... Quer ver! bem acima de nós, lá está o Caminho de São
Tiago[viii] (a Via Láctea). Ele vai
da França direto para a Espanha. Foi São Tiago da Galícia que o traçou para
mostrar a rota ao bravo Carlos Magno quando ele guerreava contra os Sarracenos[ix]. Mais longe, você tem a Carreta
das Almas (a Ursa Maior) com seus quatro eixos resplandecentes. As três
estrelas que vão na frente são as Três Bestas, e aquela menorzinha perto
da terceira é o Carreteiro. Você vê em redor disso tudo aquela chuva de
estrelas que caem? são as almas que o bom Deus não quer perto dele... Um pouco
mais abaixo, o Rastelo ou os Três Reis (Orion). É o que serve de
relógio para nós pastores. Só de olhar para eles, eu sei que agora passa um
minuto da meia noite. Um pouco mais baixo, sempre na direção sul, brilha Jean
de Milan, a tocha dos astros (Sirius)[x]. Sobre essa estrela, eis o
que os pastores contam. Parece que uma noite Jean de Milan, com os Três
Reis e o Sete-Estrelo (a Plêiade) foram convidados para o casamento
de uma estrela de seus amigos. O Sete-Estrelo (Plêiade), mais apressado,
se diz, saiu primeiro e tomou o caminho mais alto. Olhe lá, lá no alto, bem no
fundo do céu. Os Três Reis cortaram por baixo e o alcançaram. Mas este
preguiçoso do Jean de Milan, que dormiu até tarde, ficou completamente
para trás, e furioso, para atingi-los, atirou neles o seu bastão. É por isso
que os Três Reis se chamam assim de Bastão de Jean de Milan[xi]... Mas a mais bela de todas as estrelas,
senhorita, é a nossa, é a Estrela do Pastor[xii] que nos ilumina na
alvorada quando tiramos o rebanho, e também ao entardecer quando o trazemos de
volta. Nós a chamamos ainda de Maguelonne, a bela Maguelonne que corre
atrás de Pierre de Provence (Saturno) e se casa com ele a cada sete anos[xiii].
‒
Mas como! pastor, então existe casamento de estrelas?
‒
Mas sim, senhorita!
E
quando eu estava começando a lhe explicar o que eram esses casamentos, senti
alguma coisa fresca e leve pesar ligeiramente sobre meu ombro. Era a sua
cabecinha pesada de sono que se apoiava em mim com um bom farfalhar de fitas,
rendas e cabelos ondulados. Ela permaneceu assim, sem se mover, até o momento
em que os astros do céu empalideciam, apagados pelo dia nascente. Quanto a mim,
eu a olhava dormindo, um pouco confuso no fundo do meu ser, mas santamente
protegido por aquela clara noite, que não me deu mais do que belos pensamentos.
Ao redor de nós, as estrelas continuavam sua marcha silenciosa, dóceis como um
grande rebanho; e por momentos me figurava que uma daquelas estrelas, justamente
a mais preciosa e mais brilhante, tendo perdido sua rota, tinha vindo pousar
sobre meu ombro para dormir...
Conto de Alphonse Daudet (1840‒1897)
no livro Lettres de Mon Moulin
Tradução de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Todos os direitos reservados
[i]
Luberon : cadeia montanhosa da Provença. No verão, os criadores mantém os rebanhos nas pastagens altas, descendo-os para o vale antes do inverno.
[ii]
Labri : nome que se dá, na Provença, a uma raça de cães de pastor, geralmente
de cor negra.
[iii]
Mont-de-l’Ure : cadeia montanhosa entre Sisteron e Ventoux. Notre-Dame de Lure,
velha abadia dos Agostinhos, é um lugar de peregrinação muito frequentado.
[iv]
Símplices : ervas medicinais
[v] A
fada Estérelle habitaria as montanhas de l’Esterel, às quais ela dá seu nome.
[vi]
Sorgue : afluente do Rhône
[vii]
Ao relento : a expressão idiomática para este sentido é belíssima: “passer la
nuit à la belle étoile” (nota do tradutor)
[viii]
Caminho de Santiago: a Via Láctea, que orienta os peregrinos no rumo de São
Tiago de Compostela.
[ix]
Todos esses detalhes de astronomia popular são traduzidos do Almanaque
Provençal que se publica em Avignon (nota do autor).
[x]
Sírius é a estrela mais brilhante que se vê a olho nu.
[xi] Bastão
de Jean de Milan, ou Bastão de Orion
[xii]
A Estrela do Pastor (Vênus) não é uma estrela, mas um planeta
[xiii]
Esta história se encontra em um velho romance atribuído a Bernard de Tréviers,
cônego. O casamento de Maguelonne com Pierre de Provence traduz misticamente a
conjunção, que ocorre a cada sete anos, dos planetas Vênus e Saturno.