O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Lições do Professor Alexandre

 

Professor Alexandre Machado Salgado


Bem antes de entrar para o ginásio eu já conhecia de nome o Professor Alexandre, que era tio do Seu José Salgado, farmacêutico em Coruputuba. Seu Salgado era marido de minha professora de primeiro ano, Dona Maria Amélia, e era chefe da minha irmã Ana Clara. Mas voltemos ao Professor Alexandre: os meus irmãos Pedro e Zaga, algumas séries na frente, falavam sobre a seriedade do mestre de Latim. Fui conhecê-lo pessoalmente no exame de admissão, na prova oral de Português.

Tendo sido aprovado nos exames escritos, peguei o ônibus do Seu Ciro Valentini e fui para a cidade. Aguardava na fila a minha vez de ser chamado. E ali, na escada em caracol do velho prédio do Instituto, hoje Museu, fiquei conhecendo a Catarina e a Vera, filhas do doutor João de Deus. Companheiros de apreensão, fomos chamados para a sala de exame. À mesa, aguardando a demonstração dos nossos conhecimentos, a banca formada pelos mestres: Professora Terezinha e Professor Alexandre.

Os pequenos candidatos esperavam nas carteiras a vez de se apresentarem para ler um texto e responder a três perguntas de cada examinador.  Sentado na primeira carteira, bem diante da mesa, não me contive quando vi que a Vera, sendo questionada a respeito de preposições, estava hesitando... Para fazer bonito, e pensando que os professores não estavam atentos, comecei a fazer sinais para ela, querendo contar a resposta. Fui apanhado no pulo, o olhar penetrante do Professor Alexandre me paralisando. Pediu minha ficha, olhou e me disse pau-sa-da-men-te: Muito bem, Senhor Marcondes, o senhor está querendo mostrar que sabe, não é? Pois na sua vez o senhor vai ter oportunidade de mostrar o seu conhecimento: Vou lhe fazer algumas perguntinhas extras... Gelei, vi que o professor tinha ficado vermelho, achei que ele estava com muita raiva. De repente, me deu saudade de casa, do quintal tão sossegado... Mas já era a minha vez. Li o texto para a Professora Terezinha, que me fez as três perguntas regulamentares, respondi certo, meio automático. Mudei de cadeira, agora fiquei pertinho do Professor Alexandre.

Ele me fez três perguntas. Respondi, nervoso, mas respondi certo. Só que ele não parou: continuou me fazendo perguntas, uma atrás da outra. Fui rebatendo, estava bem preparado. Foram umas dez perguntas, até que ele me disse: O senhor está dispensado, pode sair. Saí, pensando que tinha posto tudo a perder. Todo o meu esforço em estudar, ler... justo num ano em que tinha ficado doente e não pude acompanhar direito o preparatório da Dona Orlinda. Nossa Senhora, e a expectativa de Mamãe... Será que vou repetir no exame de admissão, e tudo por causa da minha bobeira, querendo fazer bonito para as meninas da cidade. Claro que o Professor Alexandre vai me dar uma nota baixa, para me castigar.

Quando o resultado saiu, estava lá a minha nota, datilografada em vermelho: dez. Foi isto: o Professor Alexandre apanhou um aluninho fazendo uma arte feia, mas castigou-o somente com a repreensão, com o olhar. E com as perguntas extras. Não abaixou a nota, respeitou a demonstração do conhecimento: colocou-se acima de sua própria irritação e me deu uma lição de justiça.

Foi meu professor de Latim por dois anos. Não encontrei dificuldade: era coroinha e estava acostumado a dialogar em latim com os padres, no ritual das missas. Na terceira série do ginásio, foi meu professor de Português: redação toda semana. Adorei, poder escrever, escrever... produzir textos que depois eram valorizados porque eram lidos pelo professor em voz alta para a classe, acrescentando comentários, sugestões... Só que eu faltava muito às aulas, estava preferindo ficar recolhido na roça, tratando da cabra, do porco, olhando os pombos... Hoje sei que aquilo era depressão, durou quase um ano. Faltei a mais de uma prova do Professor Alexandre – e ele ficava irritado com isto. Então, após perder mais uma prova, lá fui eu: Professor, faltei na prova, dá para o senhor dar outra? E ele, decidido: Muito bem, pode se sentar, aqui na primeira carteira. Tire uma folha do caderno e escreva uma carta. O tratamento é Vossa Majestade. O tema é: o cabo do guarda-chuva.

Sentei-me. Tirei uma folha. Perguntei: Professor, posso pegar o dicionário? E o Professor Alexandre ficou mais calmo de repente e condescendeu: Sim, pode. E eu escrevi uma carta ao rei, apresentando-me como humilde súdito que morava pertinho de um dos quartéis do exército do reino. Claro que o rei desconhecia as irregularidades, mas os soldados aprontavam muito – e fui discorrendo, respeitosamente. Terminei por contar que um dos militares, um simples cabo, aproveitava-se do estado geral de indisciplina e sempre saía à paisana, um janota, carregando – à guisa de acessório elegante – um guarda-chuva. A vizinhança já lhe dera o apelido de O Cabo do guarda-chuva... Foi mais uma nota dez que o Professor Alexandre me deu. Apesar de estar ainda zangado com as minhas ausências.  

Aos domingos, eu ia com o Zaga à cidade para assistir à missa na Matriz, mas não era pela missa. Missa havia em Coruputuba. É que, depois da missa, o Professor Alexandre tocava o órgão. Ficávamos sentados na penumbra da igreja – enquanto as notas musicais de Bach voavam ligeiras junto ao teto, como pombas cheias de desejo de liberdade, querendo escapar pelos vitrais...

Os anos se passaram. Perambulei. Voltei para Pindamonhangaba. Meu professor tinha se aposentado havia tempos, mas continuava, imaginem, não lecionando, mas estudando. Quase todo dia consultava livros e dicionários na biblioteca pública. Várias vezes o incomodei com consultas: Professor, como é mesmo aquele provérbio em latim... E ele, sempre calmo e atencioso, me explicava que no momento não se lembrava, mas ia pesquisar e me ligava de volta. E assim fazia, ligando e tirando minhas dúvidas. A penúltima vez em que estive com ele foi num concerto na Faculdade de Música.  Entreguei-lhe um poema em homenagem ao trabalho do mestre. Alguns dias depois, no supermercado, nós nos encontramos e ele me devolveu o poema, agora vertido para o latim: foi nosso último encontro.  Mas naquela noite na Faculdade ele me disse que professor de Português precisa dar redação toda semana. Acrescentou: Se não der para corrigir, não faz mal. Importante é dar muita oportunidade para o aluno escrever.

Quando o Professor Alexandre Machado Salgado faleceu, perdi uma referência. Senti sua falta do mesmo modo como senti a falta de Papai. Mas a falta de Papai eu senti de uma vez só, num baque. A falta do Professor Alexandre fui sentindo aos poucos, cada vez mais, cada vez que pretendia fazer uma consulta sobre latim, cada vez que queria conversar sobre literatura, sobre outros tempos, outras culturas, outras línguas...

Olho para a cidade: não vejo mais passar o meu professor, de cabelos brancos e andar tranquilo, e isto me deixa triste. Nossa cidade vai perdendo suas referências, seus marcos, os seus alicerces éticos.

Já se passaram tantos anos sem o Professor Alexandre! Mas guardei as suas lições. Aquele professor tão sisudo, severo, em mais de uma ocasião mostrou que o mestre deve sim repreender, punir quando necessário. Mas não pode continuar punindo para o resto da vida. Há o momento de superar suas irritações, zangas, por mais justas que sejam, e olhar com isenção para o aluno que está ali, diante dele, e premiar o esforço que sucede o erro.

Enquanto cumpria o seu modo coerente de viver, discretamente, ele me ensinava como deve ser um verdadeiro educador.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, no livro Aconteceu na Escola, 2012.

Professor Alexandre é o segundo a contar da esquerda

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