O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 13 de outubro de 2024

O RIO QUE PASSA PELO BOSQUE TEM PRESSA



Repare bem. Na calçada de pedra antiga, bem na frente da porta do Palacete Dez de Julho, prefeitura velha de Pindamonhangaba, repare bem, tem uma bolotinha metálica fincada no chão, no meio da pedra. É um marco geodésico. Registra, entre outras coisas, a altitude do centro da cidade.

O solo que pisamos no centro da cidade de Pindamonhangaba fica 560 metros mais alto do que as praias do nosso litoral. O município de Areias, em sua zona rural, fica bem mais alto: 1.800 metros. Lá nasce o Rio Paraitinga, um dos formadores do Rio Paraíba do Sul. O Paraitinga nasce e já vai correndo para oeste, como se estivesse indo para a capital de São Paulo. A partir de certo trecho,  suas águas vão correndo paralelas às do Rio Paraibuna, que nasce no Bairro da Aparição, em Cunha, a 1.600 m de altitude.

O Paraitinga percorre pastagens e lavouras, chega a Sao Luiz todo barrento e vermelho. Mas o Paraibuna não. O Paraibuna se preserva, corre por dentro da Mata Atlântica, pelos recantos secretos dos trechos mais altos da Serra do Mar, na sombra das árvores, sempre passando bem perto da cumieira que o separa da vertente virada para o oceano. Assim, as águas do Paraibuna sao frias, límpidas, a mata nao joga  barro nele, apenas deixa correr para ele uma água transparente,  cor de conhaque, fruto da  decomposição dos restos vegetais da floresta.

As águas dos dois rios vêm procurando jeito de descer da Serra da Bocaina, e seu encontro acontece na represa de Paraibuna. Descem da barragem já com o nome definitivo de Rio Paraíba do Sul. Prosseguem na descida, dando voltas. Passam em Santa Branca, onde são detidas de novo na bela Represa de Santa Branca (Ô pescarias!) e continuam rumo oeste, em direção à Capital.

Vejam a beleza da história dessas águas. Milhares de anos atrás, o Paraíba despejava no comecinho do Tietê. Mas o solo se movimentou. Nossa região afundou uns quinhentos metros. As águas do Paraíba desistiram do Tietê, fizeram uma curva para a direita e vieram despejar no vale que se formou com aquele afundamento. Essa curva para a direita hoje está  mais ou menos em Guararema, onde as montanhas brecam e desviam seu rumo para que desçam em direção ao Vale. Agora passam em Jacareí no sentido sul-norte, já completando  a curva para a direita, e em São José dos Campos estão francamente correndo para leste! Ou seja: mudaram completamente de direção!

E engrossaram, com as águas do Rio Jaguari e do Rio do Peixe, que desceram da Represa de Igaratá. E mais as águas do Buquira, apressadas escorrendo da Mantiqueira. Vão procurando o mar, passam rápidas por Caçapava, não visitam a zona urbana de Taubaté, passam entre Quiririm e a Serra, atravessam as várzeas de Tremembé, recebendo pela margem direita o Rio Una, entram por Pindamonhangaba, onde acolhem pela esquerda o encachoeirado Rio Piracuama, nascido no Itapeva, passam pelo Bosque da Princesa e, mais à frente, recebem as frias águas do Ribeirão Grande ou Tetequera, que nasceu nas altitudes da Mantiqueira.

Vai rolando o nosso Paraíba do Sul, passa em Potim e Roseira. Faz caprichosos meandros na larga planície de Aparecida. Suas águas passam apertadas na zona urbana de Guaratinguetá e espalham-se nas grandes várzeas de Lorena. Encachoeiram-se em Cachoeira Paulista. Passam em Cachoeira espremidas,  pelo único  e possível corredor, quase um buraco, entre a Serra da Mantiqueira e a da Bocaina.

De fato, ali passa o Rio com monstros morros a apertar o rio pelos dois lados!, sem várzeas. É onde, há milhares de anos, o grande lago que cobria a nossa região, num grande tremor de terra, estourou os obstáculos e vazou para o estado do Rio de Janeiro. Na estação de trem em Cachoeira, olhe para leste. Você verá este vestígio de um tétrico cataclismo. Imagine o estrondo do rompimento e o tamanho da cachoeira do vazamento do lago. E os anos que durou esse reequilíbrio das águas!  Nao se assuste muito. Na época, não havia aqui humanos para se assustarem.  

Mas ainda falta chão para as águas do rio despejarem no Atlântico. Suas águas ainda vão ficar presas e calmas na grande Represa do Funil, região de Itatiaia, no Estado do Rio de Janeiro. Descendo da represa, o rio volta a correr, buscando sempre as terras mais baixas, querendo despejar no oceano.

Isto só vai acontecer lá em Atafona, município de São João da Barra, no estado do Rio, quase divisa com o Espírito Santo. 1.100km desde a nascente em Areias. Nasceu tão perto do mar, mas teve que dar uma volta imensa antes de despejar no Atlântico!

É assim mesmo. A Serra do Mar é uma muralha, não ia deixar o Paraitinga ou o Paraibuna vararem suas pedreiras e já despejarem nas praias de Ubatuba. Pensando o quê?

Rios que quiserem despejar em Ubatuba, em Caraguatatuba, São Sebastião, só se nascerem na vertente da Serra virada para o mar: como o Rio Picinguaba, Rio da Fazenda, Rio Itamambuca, Rio Promirim, Rio Puruba, Rio Santo Antonio ou do Ouro, Rio Indaiá, Rio Juqueriquerê (no meu amado Porto Novo)... esses sim! Nascem e já descem encachoeirados pelo meio das pedras, atraídos pelo mar.

Quando vão chegando na praia, disfarçam, perderam a pressa, se espalham mansinhos pelos manguezais... 

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TEXTO: Paulo Tarcizio da Silva Marcondes / FOTO: Lucio Mello Cesário


quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Debaixo das minhas asas

 


Escola da Vila Zezé, fincada no morro, no meio da subidona, o trecho mais íngreme da Francisca Júlia. As ruas do morro todas com nomes muito sonoros: Para chegar à escola, descendo do Conjunto São Benedito, onde eu morava, podia escolher a rota: passar pela Olavo Bilac ou pela Machado de Assis. Uma ou outra me obrigariam a continuar pela Martins Fontes.  O caminho mais costumeiro envolvia a Vicente de Carvalho. Mas ir pela Casimiro de Abreu só quisesse, por alguma razão, encompridar a distância. Eu estava rodeado pelos poetas.

De vez em quando amanhecia um cadáver numa das esquinas. Fora as notícias de arrombamentos, assaltos. No meio disso tudo, a escola até que era respeitada. Quer dizer, de noite já estava complicando um pouco. Mas complicou mesmo quando a cozinha foi arrombada num final de semana. Tristeza, indignação. Mas nos conformamos, trocamos a fechadura, não dava para saber quem foi.

Arrombaram de novo, noutro fim de semana. Agora foi a diretoria. Mas não levaram nada, só deixaram as coisas reviradas. Então pusemos uma grade entre o galpão e a diretoria. Eles vão voltar, eu disse. Porque não aconteceu nada para eles e eles estão ganhando coragem.

Voltaram mesmo, com tudo. O portão de grade amanheceu aberto, sem ter sido arrombado. O cadeado também foi levado. É que alguém entrou pelo vitrô, arrancando o vidro, e, alcançando a diretoria, assumiu a posse de todas as chaves e fez o que quis, ou o que foi possível. Muita coisa desapareceu: calculadora, gravador, máquinas, equipamentos da secretaria... Ficou um pouco de sangue no vidro partido da janela.

Senti pelo sumiço de minha ampulheta de areia amarela, lembrança da escola do Jardim Flórida. Depois encontrei os cacos no galpão, rodeados de areia colorida...

Agora não dá mais: é necessário saber quem está fazendo isso. Pelo bem de quem está fazendo isso, inclusive. O ponto de partida era o zunzunzum que vagamente nomeava uma meia dúzia de peraltas.

Comecei interrogando o mais frágil deles. Pelas afirmações, contradições e hesitações, logo tive a ficha completa: quem entrou primeiro, de quem foi a ideia, quem levou o quê. Eram todos alunos da escola, menos um. O José, quatorze anos, não era aluno da nossa escola. Morava na Vila Zezé, mas estudava na escola de um bairro vizinho.

Comecei uma peregrinação pelo morro. Batia palmas no portão. Quero falar com a sua mãe. – Por favor, o seu filho trouxe para casa um objeto assim, assado? – Ué, trouxe sim, ele falou que comprou de fulano, ou ganhou de beltrano... – Bom, a senhora, por favor, dá uma espiada no número do aparelho, vê se tem este número aqui. Se tiver, então é da escola, que entraram lá, pegaram um monte de coisa...

Quando a mãe aparecia de novo, vinha pálida, com o aparelho na mão, com uma cara que até daria dó, se fosse o caso. Mas não era o caso. Fiz um acordo com os responsáveis de cada criança: eu não tomaria providência nenhuma contra ninguém, não daria punição nenhuma, com uma só condição: que as crianças não faltassem mais às aulas. Uma falta que fosse, já era necessário que o responsável passasse pela escola para justificar.

E com o pai do José foi um pouco diferente. – Por que o senhor deixa ele estudar em outro bairro, ainda mais à noite? – Ah, é que ele prefere... – Mas por acaso o senhor sabe se ele está frequentando lá direitinho?  – Ah, tá sim, ele sai de casa toda noite, com o caderno debaixo do braço... – E ele chega lá, ele entra na escola? – Ah, decerto que sim... – Mas o senhor tem ido lá na escola dele, perguntado como ele vai indo?

O pai coçou a cabeça, não tinha muito tempo, não dava para ficar indo lá no outro bairro...

Combinei com ele a mesma coisa que tinha combinado com os outros: nenhuma providência tipo B.O. desde que o menino se transferisse para a minha escola imediatamente. O pai se espantou um pouco, depois ponderou que seria preciso o garoto concordar... E ficou assim, o senhor conversa com ele, se ele quiser se matricular na minha escola tudo bem, não faço o B.O. Eu espero até hoje à tarde.

À tarde o José apareceu, queria falar comigo. E o milagre já tinha sido consumado nessa apresentação, porque um garoto vir se apresentar na mesma escola que ele arrombou na semana passada, sabendo que o diretor sabe que foi ele, já é um milagre. Mas ele achava que milagre era o diretor querer a sua transferência para a escola arrombada.

Nós dois ficamos meio comovidos. Estávamos no jardinzinho da escola e o céu estava azul brilhante no meio das nuvens brancas. Naquele mesmo dia, de manhã, tinha havido um tiroteio no fundo do terreno da escola, e foi possível puxar com o garoto um assunto assim: Você está numa encruzilhada, você está vendo aonde vai dar um caminho, você sabe aonde vai dar o outro caminho, você pode escolher...

O José fez sua escolha. Matriculou-se mesmo. Frequentou direito. Quando faltava, vinha o pai imediatamente justificar. Todos os professores, funcionários, as merendeiras, colaboraram muito, compreenderam a delicadeza daquele momento. Repetiu a sexta série, porque tinha tido muitas faltas lá na outra escola. Mas estava encaminhado, graças a Deus! Aliás, os outros garotos protagonistas do arrombamento e do furto também se recuperaram.  Todos eles já com excesso de faltas, passaram a frequentar regularmente a escola.   Quer dizer, todos menos o Valtinho. Mas esta é outra história.

E o que me levou a agir assim, trazendo-os para cá em vez de despachá-los para lá? Acho que uma parte de mim se sentia como uma espécie de galinha choca, que pode implicar com seus pintinhos, mas não os expulsa.  Pelo contrário, ela abre as asas e os chama para o aconchego quando faz frio, quando o vento está forte demais...

Ou quando um gavião faminto sobrevoa o quintal. 

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Texto: PAULO TARCIZIO DA SILVA MARCONDES 

- Livro "Aconteceu na Escola". Gráfica Viena, 2012.

FOTO: https://www.universal.org/noticias/post/c



segunda-feira, 15 de julho de 2024

Tiroteio na escola

 



Jacareí, 1984. A manhã foi tranquila na Escola da Vila Zezé, as aulas transcorreram na maior paz. Aí o pessoal do primeiro período saiu. A Nilde e a Dona Zaíra teriam, como sempre, meia hora para varrer as salas antes que entrassem os alunos da tarde. Eu tinha ficado direto, só iria para casa às três horas. 

Então aconteceu um tiroteio. É que a guarda municipal tinha cercado um homem na mata do terreno da Santa Marina, atrás da escola, e ele, desesperado, pulou para dentro do pátio e ficou entocado no canto do muro.

As crianças do período da tarde vinham entrando, conversando. Os guardas chegaram perto do homem. Um dos guardas sentou um tapão nele: Seu safado...

A criançada chegou no galpão, de onde dava para ver a cena.

O outro guarda deu um tiro no chão perto do homem. O homem pulou para escapar do tiro. O guarda começou a atirar para acertar os pés dele: Ué, foge agora, desgraçado! Não tava fugindo de nóis?

– Nossa Senhora! Vão matar ele!

– Já pra dentro! Entra na sala! Entra! Já! Entra!

Meu Deus do céu, eu sozinho para segurar as crianças. Não queria que elas vissem aquilo. As professoras ainda não tinham chegado, não tinha quem me ajudasse. Deus me livre, uma bala perdida... E aquela cena triste de ver. O homem pulava para não ter os pés atingidos. Xingos e palavrões, dos guardas. Pedidos de misericórdia do homem, que não parava de pular. Então ele parou de pular. Caiu mole, ficou gemendo.

Eu no galpão controlando as crianças para que não saíssem das salas. Mas tinha mais criança chegando. E os guardas foram embora, arrastando o homem ferido.

Aí não dava para controlar mais nada e as crianças irromperam das salas, vieram se encontrar com os colegas que entravam, numa explosão de novidades. A escola virou um ambiente festivo. Mas havia mágoas, medo, olhares disfarçados...

– Diz que é o tio daquela menina da quarta série, que veio da Cidade Salvador...

– Ah, coitada...

E as professoras vinham chegando, inocentes inocentes! A primeira foi minha amiga Ivone*, escandalizada:

– Nossa, Paulo, você ficou sabendo que teve um tiroteio aqui? Agora que estão me contando! Meu Deus, como que está a coisa, não? Que absurdo!

– É, teve mesmo. Mas já levaram preso o homem, foi embora machucado... Olha Ivone: Taí um bom tema pra redação dos seus alunos...

– Ah – ah...

– Que isso! Não! Estou falando sério. É um bom tema, deve dar umas boas redações sim.

– Mas não, Paulo. Espera um pouco, olha aqui no meu plano (abrindo a bolsa), está vendo, eu até já mostrei pra você: este mês estou trabalhando ampliação de orações. Eu dou uma oração simples e eles primeiro acrescentam um adjetivo no sujeito. Depois, noutra etapa, acrescentam um adjetivo no predicado, depois entram os advérbios...

O semanário era muito bem organizado, caprichado. Os títulos eram sublinhados com caneta vermelha.

– Olha, Ivone, você pode pular tudo e já pedir para os alunos escreverem hoje sobre o que aconteceu hoje. Mas, primeiro, eles devem falar sobre o assunto, você pode estimular a conversa...

Foi interessante descobrir que a Ivone, intimamente, bem que gostaria de já estar fazendo coisas práticas desse tipo, mas ainda tinha ficado se prendendo na ideia de que a direção não ia gostar, que a supervisão não ia achar certo, que a delegacia de ensino podia implicar...

Caramba, a Ivone e o Fernando marido dela eram, sabem de onde? de Coruputuba, da nossa Terrinha, ora! ele era um Delmonte! tínhamos levado um semestre para descobrir isto, apesar de trabalharmos juntos todos os dias! Aí, já que a nossa amizade permitia essa liberdade, brinquei com ela:

– Ê, Ivone, qualquer dia dá um baita de um terremoto aqui em Jacareí, a cidade inteira pega fogo, um banzé danado – e dentro da sala os aluninhos vão estar escrevendo sobre um passeio no sítio do vovô – sendo que de repente eles nem tem avô e, se tivessem,  nunca que o avô ia ter sítio nenhum...

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* Ivone Bustamante Delmonte

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes - no livro “Aconteceu na Escola” - Gráfica Viena - 2012

Foto Google Earth

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Meus tempos com o Pai

Vovó Ana Emília, Ana Clara, Carlinhos, Pedro, Zaga, Paulo, Papai com o Bosco no colo



Quem acordou, primeira coisa era pedir a bênção dos adultos. Do Pai, da Mãe, da Vó. Assim: Bença Pai (beijando a mão dele). Deus te abençoe. Reza o Anjo de Deus, Pai? Respondia ele: Reza. E a gente rezava: “O anjo Deus, que por divina piedade, sois nossa guarda e proteção, nesse dia inspirai-me, defendei-me, dirigi-me,  governai-me, assim seja”.

Em seguida, a criança ia fazer a mesma coisa com a Mãe, depois com a Vó. Isso tudo de manhã. E a história se repetia ao meio dia. E de novo às seis horas da tarde. Assim, crescemos rezados, guardados, protegidos, inspirados, defendidos, dirigidos e governados, assim seja! 

Coisas que fui aprendendo com o Pai. 

Tratar das galinhas. Cedinho, frio, antes do café, encher de milho o canecão. Vamos pro quintal. As galinhas alvoroçadas, querendo sair. Antes de soltar, tem que espiar as cercas, vai que tem buraco, um pau afastado, franguinho passa no quintal do vizinho. Se tem, Pai puxa a taquara, arruma, tapa e agora sim, abre o galinheiro e deixa que eu jogue o milho. Fala: “Joga espalhado!”. Um punhadinho pra cá, um punhadinho pra lá. Bem espalhado, para os frangos comerem, se amontoar, as galinhas espantam os franguinhos, bicam, querem comer tudo.  O galo fica contente, chamando as galinhas, pega um grão de milho, em vez de engolir, solta no chão de novo, e faz uma voz de chamar, dizendo que é coisa boa, isso na voz dele, que as galinhas entendem. E tem uma galinha com pintinho, dorme separada, no pinteiro, Pai diz:  “Dá milho para ela e a quirera pros  pintinhos!”. A galinha faz que nem o galo, pega quirera só na ponta do bico, não engole, solta no chão, fica chamando os pintinhos, explicando que é comida boa. Pai troca a água, tem que dar uma esfregada por dentro, não pode criar limo, enche de água com regador, lá vem o galo chamando as galinhas, falando que é água boa. 

Fazer uma cerca. Cavar os buracos. Fincar os mourões, jogar terra, pedras e cacos de tijolo em volta dele, socar com o cabo da cavadeira até ficar muito firme. Mourões nos lugares, estender as linhas, que são os sarrafos compridos, ou então bambus inteiros, amarrados bem firme nos mourões. Uma linha em cima e outra mais embaixo. Pronto, agora, é ir trançando os paus de cerca, em pé, pode ser pau de eucalipto ou taquara aberta no meio com facão, e vai amarrando com arame nos dois sarrafos de linha. Tem que ser duas pessoas, uma de cada lado da cerca. Pai fica no lado do vizinho, eu no lado de cá. Ele me entrega a ponta do arame por cima do sarrafo de linha, eu puxo até o fim e entrego para ele a ponta por baixo do sarrafo, ele puxa quase tudo e me avisa: “Posso puxar?”. Eu tiro a mão e falo: “Pode puxar!”. Se ele puxa sem avisar eu podia cortar os dedos. Porque ele tem que puxar com a força dele, os paus ficarem amarrados sem folga. 

Pai, Mãe e Vó: gente grande toma café de jeito diferente de nós.  Eu faço igual meus irmãos, bebo o café gute-gute na caneca, até o fim. Depois, vou comendo o pão devagar. A gente sai na varandinha do tanque comendo pão, conversando. Gente grande não. Gente grande dá mordidinha no pão e um gole de café. Mastiga devagar. Depois outra mordidinha no pão e mais um gole de café. E assim vai. Quando a gente crescer acho que vai fazer assim também. 

Pai amassa o feijão pra comer. Primeiro põe feijão sozinho no prato, amassa com o garfo dele, que é grande, meio pesado. Amassa, amassa, põe farinha de milho, mistura, amassa, puxa pro canto do prato. Sem parar de conversar. Então põe o arroz e o chuchu. Se tem mistura, a mistura ele come por último, e fala que tem que ser assim. Um dia foram uns homens na escola, entraram em todas as classes, na minha classe também, a Dona Célia apresentou. Eles explicaram que precisa amassar o feijão antes de comer, que o estômago não tem dente. E distribuíram um garfo para cada aluno. Eu já sabia que ia ganhar garfo novo, brilhando, porque o Zaga já tinha ganhado na véspera e mostrou pra mim. Assim eu já sabia. Na janta, o Zaga repetiu o que o homem tinha explicado, de amassar o feijão. O Pai falou assim: Viu? 

Tem vez, de vez em quando, que o Pai dá umas machadadas de leve na casca da mangueira grande, em volta do tronco até uma altura. Responde que é pra dar bastante manga. Uns dias depois,  vai saindo um negócio grudento, parece uma cola. Depois seca. A mangueira dá bastante manga, muita, no tempo certo. O Pai levou para baixo da mangueira um banco comprido, de tábua, que ele pintou de azul. No dia que ele pintou, chuviscou e molhou o banco, a tinta ficou com umas bolhinhas azuis estufadas. 

No banco tem vez que todo mundo vai sentar lá, a mãe chama, que o Pai vai descascar cana pra todos. Cana grossa, roxa com lista amarela, gomo estufado, ele corta a cana, tira fora a parte das folhas, a ponta do lado das folhas é aguada. O que é bem doce mesmo é o meio da cana, ou então mais perto da raiz. Com o canivetão, Pai vai tirando a casca, tira a casca de uma porção de gomos de uma vez só, uma tira comprida de casca, igual uma taquarinha. Aí vai cortando cada gomo, separando dos nós, que joga fora, nó é muito duro, não dá para mastigar. Os gomos ele corta em cruz separando em toletinhos finos, entrega para cada um. Começa pelo Carlinhos, depois Ana Clara, o Pedro, o Zaga, eu, o Bosco, a Auxiliadora. Para a Salete não, muito novinha, bebezinho, no colo da mãe, a mãe pega e deixa ela ficar chupando, sem nem mastigar, só sentindo o docinho. A Vó também fica só chupando, igual a Salete. Vó não tem dente, torce o gomo para aparar o caldinho. Tem vez que é cana-mirim, bem fininha, a touceira fica atrás do galinheiro, encostada na cerca do Seu Luizinho. Cana-mirim é molinha, até o nó dá para mastigar, mas é meio sem doce. 

Tem vez que não é para chupar cana, é para chupar laranja. Tanta laranjeira no quintal, umas dez. O Pai que plantou faz tempo. Aí sentam todos no banco azul, o canivetão vai descascando as laranjas, a laranja rodando na mão do Pai, a casca encompridando para o chão até o fim, sem rebentar, e a gente pedindo: “Pai, eu quero de cuia!”. “Pai, pai, corta de tampinha pra mim!”. “Ô pai, eu quero de gomo!”. Tem vez que alguém pede: “Pai, corta de anjo pra mim!”. 

No fim dessa festança de chupar cana ou chupar laranja, tem que juntar os bagaços e as cascas, os nós e as folhas de cana e levar tudo para alguma touceira de banana. Que as bananeiras gostam dessas coisas para virar adubo para elas, e elas vão dando cachos enormes de banana nanica, prata, banana maçã, banana ouro, São Domingos, banana São Tomé... O Pai corta o cacho verdolengo,  fala que o cacho já está de vez, e pendura o cacho no gancho que ele fez no caibro acima do fogão, perto das telhas pretas de picumã. O calor do fogão vai madurando nossa banana. 

Pai dá risada bonita, contente, vendo a gente brincando. E fica todo mundo contente com a risada dele. Bonito foi quando ele fez a Vó dar risada, ela quase nunca ri. Para fazer doce de mamão verde pai que ralou tudo, coisa que cansa o braço da pessoa. Depois, tinha que espremer para sair o caldo, que joga fora, para o doce aproveita só a massa do mamão. Mãe buscou na cômoda a toalha da mesinha, desdobrou, branquinha, de saco alvejado, ela que tinha costurado na maquininha de mão, entregou pra Vó. O Pai encheu o meio da toalha com a massa do mamão ralado, embrulhou, igual uma bala muito grandona, tamanho duma bola de capotão. Pegou numa ponta, Vó na outra, e foram torcendo, cada um torcendo puxando para um lado, parecia cabo de guerra. Espremendo em cima do tanque, começou a escorrer o caldo, Pai deu risada: “Força, Donana!”. Assim que ele chamava a Vó. A Vó deu risadinha pela metade, sem abrir muito a boca e não ficou por baixo: “Força aí, Seu Chiquito!”. Os dois torcendo mais, espremendo mais, escorrendo aquela água transparente verde, os dois agora dando risada inteira, criançada escangalhando na risada por causa da provocação do Pai e da Vó. Mãe veio com a Salete no colo, ficou dando risada também, Salete dando tchau e risadinha. 

Nunca Pai saía sozinho na rua. Para a igreja, para o escritório, o chapeiro, para o armazém, para a escola no tempo em que as aulas dos adultos eram lá. Sempre ele levava um de nós para companhia. Às vezes eu ia, pequeno, mas fazia companhia, conversava, perguntava, ele explicava. Fomos no bar do seu Rozalah. De longe a gente ouvia as risadas e o pipoco das bolas de bilhar, as conversas altas, os deboches. Entramos, virou um silêncio completo. Todos os homens, moços e os mais velhos, todos pararam com o jogo e as falas, uns avisando para os outros: “Xiu, olha, é o Professor!” Alguns ficaram segurando os tacos como se fosse a posição de descansar armas. Seu Rozalah veio atender o Pai, e o filho dele, Seu Zé Souraty, também veio comentar as coisas que o Pai estava perguntando. O tempo todo o bar ficou inteiro quietinho. Nenhuma bola rolando nas mesas. Depois que saímos, para ir na leiteria, recomeçou a barulheira. Nossa, pensei,  acho que eles só ficam quietos desse jeito se entrar o Doutor Cícero, nem sei, será? 

Saindo de casa com o Pai, eu reparava. Encontrando com algum amigo, não se perguntavam oi, bom dia, como vai? Não! Era assim o cumprimento deles: Salve Maria! A resposta: Salve Maria!. Porque eram todos congregados marianos, além de pertencerem à Sociedade São Vicente de Paulo, que arrecadava para fazer caridade. 

Espantado com o Pai eu fiquei quando ele com a Mãe trouxeram da cidade, no ônibus do Seu Ciro, uma gigante cabeça de boi, embrulhada em bastante jornal. Mãe falou que aquilo ia dar muita mistura para nossa comida, língua, miolo, as bochechas e quase tudo se aproveitava. Pai levou a cabeça de baitas chifres para a área cimentada atrás da cozinha, deixou no chão, foi buscar o machado. Veio. A cabeça olhando para ele com enormes olhos arregalados. Pai levantou o machado no alto e desceu com força. Pá! A cabeça deu um pulo. Pai atacou de novo. Espirrava sangue na parede do murinho do Seu Luiz. Nova machadada, a cabeça grudou no machado e subiu junto. Parecia uma briga, uma batalha que eu tinha visto no livro de latim do Pai, mostrando a luta de Teseu contra o Minotauro. Deu um pouco de desgosto, porque a camisa do Pai ficou feia, parecia um crime de sangue. Teve irmão que não quis ver, ou ficou vendo de longe. 

Mas depois, depois mesmo, Vó fez miolo cozido, temperado com limão, comemos no arroz, gostoso mesmo. Na janta fez a língua, foi outro trabalhão barulhento, ela teve que bater a língua na pedra do tanque, para soltar a pele que recobre. No fim, cozida e temperada no molho de tomate da horta, nossa, ficou muito molinha, igual sopa de músculo. Acho que ninguém quis comer os olhos do boi. Eu não quis não.O Pai foi um caçador antigo, com armas cortantes e sanguinárias, eu imaginei. 

Durou vários anos a caveira do boi fincada no mourão mais alto da horta. Alguém achava que ia espantar os pardais que queriam comer as mudinhas. Parece que não adiantou. Os passarinhos sentavam no chifre do bicho. Nós é que brincávamos de ter medo daqueles buracões dos olhos, e dos chifres revirados, armas de luta. Perdeu para o nosso Pai. 

Não gostava de subir nas árvores o nosso Pai. Mas às vezes subia no pé de abacate, para estender um compridíssimo arame que terminava num bambu em cima do telhado, descendo pelas telhas e pelo forro, para chegar até o rádio RCA, para servir de antena. E servia bem. Pai sintonizava em estações de outros países, às vezes. Ensinou a gente a gostar de música clássica. Eu gostava de olhar as lampadinhas acesas dentro do rádio, eram as válvulas. Pai estendeu um fio elétrico de uma tomada até o rádio, com um soquete no meio. No soquete, uma lâmpada fraquinha, que acendia em certos momentos. 

Papai ajudava a missa dos padres, no tempo em que a missa era inteirinha rezada em latim. Nós fomos crescendo e ele foi nos ensinando também. O Carlos, o Pedro, começaram a ajudar missa. Depois o Zaga e eu. Rezando em latim. Sabendo a hora de subir ao altar, pegar a estante com o missal e levar para o outro lado. Sabendo o momento certo de ir buscar na credência as galhetas com água e com vinho para despejar no cálice que o padre nos apresentava. Fazendo tilintar a campainha nos sagrados instantes da consagração. Um ritual belíssimo. E usando as batinas e as sobrepelizes.  O Bosco cresceu, ensinamos para ele também. Mas isto já foi quando o mundo estava diferente. 

Pai que tinha a chave da igreja, abria cedo para trocar o azeite da lâmpada do Santíssimo, eu ia com ele. Dias certos da semana, chegava Seu Machadinho para varrer com a vassoura de pelo. Tempo de céu azul, eu ia andar lá fora, dando a volta na igreja, pisando nos quadrados de cimento junto à parede branca. Andorinhas mortas eu achava, pretinhas, azuladas até, peito branquinho. Pai explicava, elas mergulhando na velocidade para pegar bichinho, chocavam com a parede branca, não percebiam a distância. Às vezes, Pai era chamado em casa para abrir a igreja: “Seu Francisco, Seu Francisco!”. É que tinha algum bebê com sapinho, vinha a mãezinha lá da Campineira, da Figueira, da Vila Prata, vinha de longe, trazendo a criança, para o Pai pegar a chave do sacrário e passar na boquinha para sarar. Pai atendia na hora, fazia isso, depois falava para a mãe da criancinha: “Mas agora vai no Seu Salgado, na farmácia, ele tem remedinho bom!”. Seu Salgado era o marido da minha professora do primeiro ano, Dona Maria Amélia.

A Mãe ficou sabendo que o Padre Donizete Tavares de Lima estava fazendo milagres em Tambaú. O rádio falava muito nisso, o Padre era devoto de Nossa Senhora Aparecida. Toda tarde as pessoas se juntavam em volta do rádio para ouvir a bênção do Padre Donizete. A Mãe colocava diante do rádio um copo de água, que virava água benta de Nossa Senhora Aparecida. Cada um bebia um golinho. Então a mãe pediu para o Pai escrever uma carta para o Padre Donizete, pedindo bênção e graças para a família e algumas graças especiais. Pedindo que o Pai fosse curado das convulsões, que sarassem todos da casa, a Vó tinha um antigo problema urinário, que ficassem curados de vez os pulmões do Carlinhos e da Ana Clara e que fosse curado o pezinho torto do Zaga. Mãe estava ditando isso e o Pai escrevendo. Daí o Pai falou: "É o direito ou o esquerdo o pezinho?". Estávamos todos nós na cama de Pai e Mãe, prestando atenção. Então o Pai catou o pezinho doente do Zaga e deu beijo estalado, falou: "Ah, é o pezinho esquerdo do filhinho!". E acrescentou mais essa linha na carta para o milagroso Padre Donizete. E levou a carta no Chapeiro para ir para o Correio de Pinda. Quem levava para Pinda no dia seguinte era o Carlinho. 

Semana depois, Pai chegou em casa contente e nos chamou para mostrar. Tinha ganhado do engenheiro uma bonita muda de jabuticaba. Já grandinha. Todos falavam que ia levar muito tempo para frutificar. Mas Pai falou: "Não!, vou caprichar nessa mudinha". Fomos com ele até quase o fundo do quintal, mais ou menos na direção do fim do quintal do Seu Eurico. Pai fez um buraco meio fundo, fomos buscar esterco das galinhas, é o melhor que tem. Achamos ainda um pouco de esterco de boi na horta. Vai tudo para o buraco, misturado com folhas secas, ficou uma terra gorda. O Pai plantou a muda de jabuticabeira, e molhou muito, vários regadores, colaboramos com viagens do regadorzinho pequeno. Agora, era esperar  para ver se brotavam folhinhas novas na promissora arvorezinha. 

Tempo de frio, Pai e Mãe varrendo o quintal, a parte de chão batido perto da varanda do tanque, ventava, caía galhinho seco da ameixeira, vinham voando folhas da laranjeira, amarelas, eu sentado no toco da Vó, sol fraquinho. Mãe perguntava: “Mas Quito, por que será que nesse tempo fica caindo tanto galho seco, folha seca...?”. E o Pai, com vassouradas curtas para não levantar poeira, ia falando: “É que vai chegar a primavera, Nega, começa a chover,  as plantas vão se encher de folha nova, galho novo, tem que ter esses ventos de agora pra fazer essa limpa, arrancar o que está seco, galho, folha velha, abrir espaço...”. E Mãe comentava: “Nossa, Deus faz tudo certinho, né!”.

O Pai começou a chorar na mesa e foi para o quarto, tapou a cabeça com os braços. Mãe foi falar com ele, nós crianças não tivemos coragem de perguntar. O Carlinho quando chegou do escritório falou com a Mãe o que estava acontecendo. Foi conversar com o Pai. Sentou na cama dele, ficou um tempão lá. Saiu quieto, o Carlinho. No dia seguinte, veio o Dr. Caio, falou com o Pai, escutou o coração dele, deu tapinhas na barriga para saber de gases, baixou as pálpebras para ver a cor dos olhos, pediu para Pai mostrar a língua. Conversou com a Mãe e no dia seguinte a ambulância levou o Pai para a Santa Casa. A Mãe foi junto. Uma semana, duas semanas. Ficamos por conta da Vó e da Ana Clara. Carlinho era o mais velho, mas trabalhava no escritório, vinha almoçar, o almoço tinha que estar pronto, ele logo voltava para o serviço. A casa ficou chata, quieta. O Pedro estava no ginásio, ia todo dia para Pinda, no ônibus do Seu Ciro. O Zaga estudava no primário, à tarde. Eu estudava no segundo ano, de manhã. Bosco ainda não estudava. 

O Carlinhos quase toda tarde precisava levar e buscar correspondência da Companhia na cidade, passar nos bancos, pagar promissórias da Companhia, fazer pequenas compras para o escritório, resolver assuntos na Casa da Lavoura, coisas assim. Às vezes ele me levava, eu estudava de manhã. Eu gostava muito. Entrava com ele pelos bancos, a coletoria estadual, a federal, só assistindo as conversas dele com os funcionários. Depois do serviço feito, ainda demorava para o horário do ônibus voltar, a gente saía passeando por Pinda.  Eu gostava quando ele falava: Vamos no São Benedito! Era longe. Chegava lá, um largo imenso, descampado, nenhuma árvore, um terreirão de terra batida, areia, um bom buraco no meio, para enfiar o mastro principal do circo. Era lá que se armava circo. Do outro lado, a igreja. Não tinha muito que fazer por ali. Tinha a casa do padrinho do Zaga, o Seu João Caetano, músico da banda e policial da Guarda Civil. Casado com a Dona Aparecida. 

Aí um dia, o Carlinho falou: Vamos visitar o Pai na Santa Casa! E fomos. A Santa Casa ficava quase no meio de uma fazenda. Tinha vacas de leite, árvores de frutas. Entramos, fomos para o quarto onde estavam o Pai e a Mãe. Era uma parte da Santa Casa em que as paredes eram de tábua. O Pai deitado numa cama, a Mãe sentada na outra. Ficaram contentes com nossa visita, conversaram, contei coisas da escola, lições da Professora Dona Célia, que estava me ensinando a gostar de ler. Chegou a hora de sair, era quatro horas, o ônibus dos Valentini não esperava. Papai me chamou para perto da cama, me puxou de leve, me beijou no rosto, estranhei a barba meio pontuda, pedi a bença, falei tchau, fomos saindo, saindo, saímos. Voltamos para a casa, que estava sem pai nem mãe. 

Três dias depois, eu e o Bosco estávamos no quintal brincando com terra, parou um carro azul na porta. Era o Tio Gordo, o Jota Marcondes, avisando que o Pai tinha morrido na Santa Casa, que precisava buscar o CORPO. Ficamos certamente com as maiores caras de bobos da nossa vida. Não sei quem, alguém foi tomando decisões, logo depois estávamos todos dentro da ambulância, tinha que passar na escola para pegar o Zaga, o Pedro já estava com a gente, já tinha voltado do ginásio. Todos choravam. Zaga veio, entrou, muito vermelho, a gente, chorando, falava assim: Não chora Zaga. 

Foi tudo muito triste e assustador. A vida nossa ficou muito diferente. O Carlinhos já trabalhava no escritório fazia dois anos. A Ana Clara, com quinze anos, começou a trabalhar na farmácia, para ajudar em casa. Dividimos os serviços de casa, para não pesar muito para ninguém. Mamãe organizou rodízios semanais envolvendo todos os filhos e filhas, menos quem trabalhava fora, para cuidar de tudo na casa. Limpeza, lavagem de roupa, que a Vozinha estava cansada, lidar com o fogão, fazer comida, tratar dos bichos, cuidar do quintal, refazer a horta, que tinha ficado abandonada, reforçar as cercas, já bem deterioradas. 

O pé de jabuticaba, coitado do pai, não ficou nunca sabendo. Dois anos depois começou a frutificar. Mas não nasceram jabuticabas. Nasceram umas frutas maiorezinhas, amarelas, meio cor de laranja. Azedas se verdolengas, mas docinhas se bem maduras. Fizemos muito suco com essas frutas deliciosas. Eram uvaias. Viu, Pai?

Setenta anos depois eu contei para o Zaga, que já estava velhinho que nem eu, contei para ele, porque ele não lembrava, contei do Pai escrevendo a carta para o Padre Donizete. Contei que ele parou a carta para beijar o pezinho do Zaga. O Zaga não sabia disso, não lembrava, foi responder e engasgou, depois falou alguma coisa mais ou menos assim: “Mais foi? Foi isso? Deus, o Pai? Paulo, eu não sabia...que bom que você contou isso...” Parece que lá longe, em Limeira, do outro lado do telefonema, um velhinho estava querendo chorar. Não sei. Do lado de cá eu sei que tinha outro velhinho já engolindo a lágrima. 

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Foto de Maria Tereza da Silva Marcondes

 

domingo, 26 de maio de 2024

Controlando os moradores do paraíso

 

A Cooperativa e a Pensão, no Largo



Era mesmo um paraíso, dizem os antigos moradores de Coruputuba. De fato, a Fazenda Coruputuba, construída em torno da fábrica de papel, dispunha de todas as comodidades para as famílias dos funcionários. As famílias tinham acesso a muitos benefícios totalmente gratuitos, como ambulatório médico, atendimento odontológico, enfermaria, atividades sociais e esportivas, cinema, distribuição diária de leite, moradia com água encanada e energia elétrica, iluminação pública, grupo escolar e ginásio, permissão para catar lenha nos eucaliptais, criar animais no quintal, cultivar hortaliças e frutas...

E havia também o comércio e fornecimento de serviços autorizados pela companhia: armazém, bar, padaria, barbearia, pensão, açougue, farmácia, leiteria e muitas pequenas lojas de variedades que alguns moradores abriam em suas casas, ou fornecimento de serviços de barbearia, cabeleireira, sapataria, consertos de bicicleta, solda elétrica e vários outros, que eram feitos nos quintais dos moradores, ou nos quartos de solteiro. Meu pai mesmo, e mais tarde os meus irmãos, deram aulas particulares na varanda de casa.

Todos esses benefícios fornecidos pela Companhia tinham seus objetivos práticos. Principalmente a segurança do patrimônio e o controle social.

O patrimônio da Companhia era muito valioso. A fábrica de papel, mais tarde de celulose também, com equipamentos caríssimos, estoques muito valiosos. Também as obras de engenharia civil, as represas com grande estoque de água para os processos produtivos, as linhas de transmissão de energia elétrica, tudo devia ser protegido. Quem podia garantia a segurança de todo esse patrimônio? Quem podia proteger a fábrica, as represas, os eucaliptos?

Eram os moradores. Sem  moradores, a fábrica, os eucaliptos, os cafezais, os arrozais, o gado leiteiro, a escola, o clube, o armazém, tudo estaria indefeso, entregue a invasões, furtos e destruições.

Os planejadores de Coruputuba colocaram as vilas nos lugares estratégicos, em volta da fábrica, nos acessos aos grandes eucaliptais e nas entradas pelas rodovias e pela ferrovia.

Nos limites de Coruputuba com Moreira César ficavam a Vila Figueira e a Vila Bela Vista. Nos limites com as terras próximas da Estrada de Ferro Central do Brasil ficavam as grandes Vila Maria e Vila Esperança. Vilas menores se espalhavam entre essas duas maiores.

Protegendo o acesso ao Primeiro e ao Segundo Tanque, era a Vila Jacarandá. Vigiando o Terceiro Tanque, era a Vila Tanque, depois chamada de Vila São José. Rodeando o centro de convivência, com a Igreja, Farmácia, Campo de Futebol, Quadra, o Largo, Pensão, Cooperativa, Escola, Açougue, ficava a Avenida Alberto Simi, com a Rua São Pedro e os Quartos de Solteiros.

Em volta da fábrica se estendiam a Rua Nossa Senhora Aparecida, a Avenida Cícero Prado, a Praça Industrial e, nos fundos do terreno da fábrica, a enorme Vila Campineira e a Vila Bela, desmanchada para construção da fábrica de celulose. Protegendo o acesso da Fazenda pela Estrada Rio-São Paulo, ficava a Avenida Coruputuba, que hoje é estrada municipal.

Essa disposição estratégica das vilas facilitava que os próprios moradores tomassem conta da imensa propriedade da Companhia, ficando atentos a qualquer movimentação de veículos desconhecidos ou de pessoas estranhas e mal intencionadas.

Os moradores tinham que se sentir bem. Por isto a Companhia lhes garantiu tantos benefícios. O principal benefício foi a moradia gratuita. Morar perto do emprego, isto é muito bom para o trabalhador e sua família. Além disto, não pagar aluguel, ter garantia de água encanada, energia elétrica, iluminação nas ruas, manutenção da casa. Poder morar num lugar seguro, com todos os recursos de uma pequena cidade. Isto é muito valioso para o trabalhador.

E isto era o primeiro item do controle social. Aquela grande comunidade era formada por milhares de pessoas que se comportavam dignamente, educadamente, com raríssimas ocorrências desagradáveis. Milhares de pessoas que trabalhavam bem e não davam trabalho para a administração.

Ao primeiro sinal de comportamento desregrado, o trabalhador era chamado para uma conversa e, se não fosse ameaçado de perder o emprego, podia ser ameaçado de perder a casa - e isso nenhum trabalhador queria, nenhuma família queria. Perder a casa significava ir morar na cidade e viajar todo dia para ir trabalhar na fábrica. Ter de pagar aluguel na cidade e perder todas as comodidades que tinha conquistado para sua família.

A grande comunidade coruputubense era pacífica e disciplinada. As famílias usufruíam dos benefícios disponíveis, respeitando as regras e as recomendações.

Uma vez parou em frente de casa um senhor de bicicleta, bateu palmas, quando atendemos ele falou: Olha, vocês esqueceram de apagar a luz da varanda!.

Vejam só. Não era um guarda. Era um morador de outra vila, pessoa que a gente nem conhecia. Estava cumprindo o dever dele, de nos avisar. Nós agradecemos e nunca mais deixamos a lâmpada acesa de dia.

Meu pai, contratado pela Companhia, dava aulas noturnas para os trabalhadores que não tinham completado o primário. E era importante que todos os trabalhadores fossem ensinados a ler e escrever. As máquinas modernas que estavam sendo instaladas na fábrica tinham instruções para montagem e operação, precisavam ser manuseadas por quem soubesse ler os manuais.

Houve um tempo em que as aulas do meu pai eram dadas numa sala do grupo escolar. Depois, passaram a ser na nossa casa, as mesas de tábua e os grandes bancos ocupavam a sala e um dos quartos. Papai fazia a chamada, distribuía os cadernos, passava as lições no quadro negro, explicava, tirava as dúvidas, dava as tarefas para casa.

No dia seguinte, cedinho, levava para o chapeiro o resumo da chamada. Os alunos que tivessem faltado à aula tinham o cartão de ponto retido. Se não tivessem motivo justificado para a falta, tinham desconto no dia de trabalho. Isto fazia parte do controle social da Companhia, que estava pagando a alfabetização deles.

Numa época em que todos os fogões ainda eram a lenha, todos podiam lenhar debaixo dos eucaliptos, mas era proibido catar pau de lenha da grossura de uma garrafa. Os eucaliptos eram importantes para servir de combustível para as caldeiras da fábrica. As árvores que fossem cortadas pelos trabalhadores eram picadas e os paus empilhados corretamente, para serem transportados. No meio do eucaliptal encontrávamos essas pilhas de paus bem organizadas, com uma lista de tinta branca cobrindo a pilha de fora a fora, para evitar que alguém retirasse algum dos paus para levar para casa para servir de lenha.

Era a Companhia exercendo o controle social da população.

Tudo que era da Companhia era preservado por todos os moradores. Mesmo os moleques que andavam com estilingues podiam até dar pedradas nos cachos de coquinho, mas nunca atiraram contra as lâmpadas dos postes. Isto seria muito grave, a família seria punida pela Companhia.

A casa e o quintal de cada família era como se pertencesse mesmo àquela família. Ninguém entrava sem ordem. Mas, em caso de necessidade, a Companhia mandava funcionários tomar providências. No fundo do nosso quintal havia um belo coqueiro, atrás da última bananeira, quase encostado no muro da fábrica. Um dia encontramos o coqueiro caído, cortado quase pela raiz. Entendemos o que aconteceu. Funcionários da fábrica pularam no nosso quintal, certamente com escada, e derrubaram o coqueiro, porque ele já estava encostando na fiação elétrica dos postes da marcenaria.

E estava certo. Tudo tinha que ser feito para preservar a fábrica, que era a fonte de sustento de todos os moradores.

Coruputuba era isso. Uma grande comunidade, onde todos se sentiam responsáveis por todos, cuidando da preservação dos progressos conquistados.