Carlos Drummond, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira
AMIGO. MEU, J. Guimarães
Rosa, mano-velho, muito saudar!
Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de
Riobaldo.
Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá… Você
sabe: a vida é um Itamarati – viver é muito dificultoso.
Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma
língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos
e volapuques.
Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às
vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar
a significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão:
Veredas. Nenhum dicionário dá a palavra “vereda” com o significado que você
mesmo define à página 74: “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto
pequeno é vereda.” Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: “ciriri dos
grilos”, “gugo da juriti” etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é
“arga”, “suscenso”, “lugugem” e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha
vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha
ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou
será?
Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare
fez Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não
poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço A sua
invenção é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual
dele. O vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que seus pagos e
arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa formação linguística,
ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar os pontos, nem que
seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a gente começa a se
sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré. Só que acho
que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do último capítulo de
Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas levaria? Eu
levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso de
Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive
a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia
Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! Nunca que maldei nada.
Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego
Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com uma
intensidade assombrosa. E o sertão?
O sertão é uma espera enorme.
E o silêncio?
O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe
no colo.
Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça
Rosa’uarda, ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que
proseava gentil sobre as sérias imoralidades.
Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe:
O diabo não há! Existe é o homem humano.
Soscrevo.
13/3/1957
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Fonte: BANDEIRA, Manuel. “Grande sertão: veredas”. in: Poesia
completa e prosa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p.590-92.
https://www.revistaprosaversoearte.com/
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