Quem acordou, primeira coisa era pedir a bênção dos adultos. Do Pai, da Mãe, da Vó. Assim: Bença Pai (beijando a mão dele). Deus te abençoe. Reza o Anjo de Deus, Pai? Respondia ele: Reza. E a gente rezava: “O anjo Deus, que por divina piedade, sois nossa guarda e proteção, nesse dia inspirai-me, defendei-me, dirigi-me, governai-me, assim seja”.
Em seguida, a criança ia fazer a mesma coisa com a Mãe, depois com a Vó. Isso tudo de manhã. E a história se repetia ao meio dia. E de novo às seis horas da tarde. Assim, crescemos rezados, guardados, protegidos, inspirados, defendidos, dirigidos e governados, assim seja!
Coisas que fui aprendendo com o Pai.
Tratar das galinhas. Cedinho, frio, antes do café, encher de milho o canecão. Vamos pro quintal. As galinhas alvoroçadas, querendo sair. Antes de soltar, tem que espiar as cercas, vai que tem buraco, um pau afastado, franguinho passa no quintal do vizinho. Se tem, Pai puxa a taquara, arruma, tapa e agora sim, abre o galinheiro e deixa que eu jogue o milho. Fala: “Joga espalhado!”. Um punhadinho pra cá, um punhadinho pra lá. Bem espalhado, para os frangos comerem, se amontoar, as galinhas espantam os franguinhos, bicam, querem comer tudo. O galo fica contente, chamando as galinhas, pega um grão de milho, em vez de engolir, solta no chão de novo, e faz uma voz de chamar, dizendo que é coisa boa, isso na voz dele, que as galinhas entendem. E tem uma galinha com pintinho, dorme separada, no pinteiro, Pai diz: “Dá milho para ela e a quirera pros pintinhos!”. A galinha faz que nem o galo, pega quirera só na ponta do bico, não engole, solta no chão, fica chamando os pintinhos, explicando que é comida boa. Pai troca a água, tem que dar uma esfregada por dentro, não pode criar limo, enche de água com regador, lá vem o galo chamando as galinhas, falando que é água boa.
Fazer uma cerca. Cavar os buracos. Fincar os mourões, jogar terra, pedras e cacos de tijolo em volta dele, socar com o cabo da cavadeira até ficar muito firme. Mourões nos lugares, estender as linhas, que são os sarrafos compridos, ou então bambus inteiros, amarrados bem firme nos mourões. Uma linha em cima e outra mais embaixo. Pronto, agora, é ir trançando os paus de cerca, em pé, pode ser pau de eucalipto ou taquara aberta no meio com facão, e vai amarrando com arame nos dois sarrafos de linha. Tem que ser duas pessoas, uma de cada lado da cerca. Pai fica no lado do vizinho, eu no lado de cá. Ele me entrega a ponta do arame por cima do sarrafo de linha, eu puxo até o fim e entrego para ele a ponta por baixo do sarrafo, ele puxa quase tudo e me avisa: “Posso puxar?”. Eu tiro a mão e falo: “Pode puxar!”. Se ele puxa sem avisar eu podia cortar os dedos. Porque ele tem que puxar com a força dele, os paus ficarem amarrados sem folga.
Pai, Mãe e Vó: gente grande toma café de jeito diferente de nós. Eu faço igual meus irmãos, bebo o café gute-gute na caneca, até o fim. Depois, vou comendo o pão devagar. A gente sai na varandinha do tanque comendo pão, conversando. Gente grande não. Gente grande dá mordidinha no pão e um gole de café. Mastiga devagar. Depois outra mordidinha no pão e mais um gole de café. E assim vai. Quando a gente crescer acho que vai fazer assim também.
Pai amassa o feijão pra comer. Primeiro põe feijão sozinho no prato, amassa com o garfo dele, que é grande, meio pesado. Amassa, amassa, põe farinha de milho, mistura, amassa, puxa pro canto do prato. Sem parar de conversar. Então põe o arroz e o chuchu. Se tem mistura, a mistura ele come por último, e fala que tem que ser assim. Um dia foram uns homens na escola, entraram em todas as classes, na minha classe também, a Dona Célia apresentou. Eles explicaram que precisa amassar o feijão antes de comer, que o estômago não tem dente. E distribuíram um garfo para cada aluno. Eu já sabia que ia ganhar garfo novo, brilhando, porque o Zaga já tinha ganhado na véspera e mostrou pra mim. Assim eu já sabia. Na janta, o Zaga repetiu o que o homem tinha explicado, de amassar o feijão. O Pai falou assim: Viu?
Tem vez, de vez em quando, que o Pai dá umas machadadas de leve na casca da mangueira grande, em volta do tronco até uma altura. Responde que é pra dar bastante manga. Uns dias depois, vai saindo um negócio grudento, parece uma cola. Depois seca. A mangueira dá bastante manga, muita, no tempo certo. O Pai levou para baixo da mangueira um banco comprido, de tábua, que ele pintou de azul. No dia que ele pintou, chuviscou e molhou o banco, a tinta ficou com umas bolhinhas azuis estufadas.
No banco tem vez que todo mundo vai sentar lá, a mãe chama, que o Pai vai descascar cana pra todos. Cana grossa, roxa com lista amarela, gomo estufado, ele corta a cana, tira fora a parte das folhas, a ponta do lado das folhas é aguada. O que é bem doce mesmo é o meio da cana, ou então mais perto da raiz. Com o canivetão, Pai vai tirando a casca, tira a casca de uma porção de gomos de uma vez só, uma tira comprida de casca, igual uma taquarinha. Aí vai cortando cada gomo, separando dos nós, que joga fora, nó é muito duro, não dá para mastigar. Os gomos ele corta em cruz separando em toletinhos finos, entrega para cada um. Começa pelo Carlinhos, depois Ana Clara, o Pedro, o Zaga, eu, o Bosco, a Auxiliadora. Para a Salete não, muito novinha, bebezinho, no colo da mãe, a mãe pega e deixa ela ficar chupando, sem nem mastigar, só sentindo o docinho. A Vó também fica só chupando, igual a Salete. Vó não tem dente, torce o gomo para aparar o caldinho. Tem vez que é cana-mirim, bem fininha, a touceira fica atrás do galinheiro, encostada na cerca do Seu Luizinho. Cana-mirim é molinha, até o nó dá para mastigar, mas é meio sem doce.
Tem vez que não é para chupar cana, é para chupar laranja. Tanta laranjeira no quintal, umas dez. O Pai que plantou faz tempo. Aí sentam todos no banco azul, o canivetão vai descascando as laranjas, a laranja rodando na mão do Pai, a casca encompridando para o chão até o fim, sem rebentar, e a gente pedindo: “Pai, eu quero de cuia!”. “Pai, pai, corta de tampinha pra mim!”. “Ô pai, eu quero de gomo!”. Tem vez que alguém pede: “Pai, corta de anjo pra mim!”.
No fim dessa festança de chupar cana ou chupar laranja, tem que juntar os bagaços e as cascas, os nós e as folhas de cana e levar tudo para alguma touceira de banana. Que as bananeiras gostam dessas coisas para virar adubo para elas, e elas vão dando cachos enormes de banana nanica, prata, banana maçã, banana ouro, São Domingos, banana São Tomé... O Pai corta o cacho verdolengo, fala que o cacho já está de vez, e pendura o cacho no gancho que ele fez no caibro acima do fogão, perto das telhas pretas de picumã. O calor do fogão vai madurando nossa banana.
Pai dá risada bonita, contente, vendo a gente brincando. E fica todo mundo contente com a risada dele. Bonito foi quando ele fez a Vó dar risada, ela quase nunca ri. Para fazer doce de mamão verde pai que ralou tudo, coisa que cansa o braço da pessoa. Depois, tinha que espremer para sair o caldo, que joga fora, para o doce aproveita só a massa do mamão. Mãe buscou na cômoda a toalha da mesinha, desdobrou, branquinha, de saco alvejado, ela que tinha costurado na maquininha de mão, entregou pra Vó. O Pai encheu o meio da toalha com a massa do mamão ralado, embrulhou, igual uma bala muito grandona, tamanho duma bola de capotão. Pegou numa ponta, Vó na outra, e foram torcendo, cada um torcendo puxando para um lado, parecia cabo de guerra. Espremendo em cima do tanque, começou a escorrer o caldo, Pai deu risada: “Força, Donana!”. Assim que ele chamava a Vó. A Vó deu risadinha pela metade, sem abrir muito a boca e não ficou por baixo: “Força aí, Seu Chiquito!”. Os dois torcendo mais, espremendo mais, escorrendo aquela água transparente verde, os dois agora dando risada inteira, criançada escangalhando na risada por causa da provocação do Pai e da Vó. Mãe veio com a Salete no colo, ficou dando risada também, Salete dando tchau e risadinha.
Nunca Pai saía sozinho na rua. Para a igreja, para o escritório, o chapeiro, para o armazém, para a escola no tempo em que as aulas dos adultos eram lá. Sempre ele levava um de nós para companhia. Às vezes eu ia, pequeno, mas fazia companhia, conversava, perguntava, ele explicava. Fomos no bar do seu Rozalah. De longe a gente ouvia as risadas e o pipoco das bolas de bilhar, as conversas altas, os deboches. Entramos, virou um silêncio completo. Todos os homens, moços e os mais velhos, todos pararam com o jogo e as falas, uns avisando para os outros: “Xiu, olha, é o Professor!” Alguns ficaram segurando os tacos como se fosse a posição de descansar armas. Seu Rozalah veio atender o Pai, e o filho dele, Seu Zé Souraty, também veio comentar as coisas que o Pai estava perguntando. O tempo todo o bar ficou inteiro quietinho. Nenhuma bola rolando nas mesas. Depois que saímos, para ir na leiteria, recomeçou a barulheira. Nossa, pensei, acho que eles só ficam quietos desse jeito se entrar o Doutor Cícero, nem sei, será?
Saindo de casa com o Pai, eu reparava. Encontrando com algum amigo, não se perguntavam oi, bom dia, como vai? Não! Era assim o cumprimento deles: Salve Maria! A resposta: Salve Maria!. Porque eram todos congregados marianos, além de pertencerem à Sociedade São Vicente de Paulo, que arrecadava para fazer caridade.
Espantado com o Pai eu fiquei quando ele com a Mãe trouxeram da cidade, no ônibus do Seu Ciro, uma gigante cabeça de boi, embrulhada em bastante jornal. Mãe falou que aquilo ia dar muita mistura para nossa comida, língua, miolo, as bochechas e quase tudo se aproveitava. Pai levou a cabeça de baitas chifres para a área cimentada atrás da cozinha, deixou no chão, foi buscar o machado. Veio. A cabeça olhando para ele com enormes olhos arregalados. Pai levantou o machado no alto e desceu com força. Pá! A cabeça deu um pulo. Pai atacou de novo. Espirrava sangue na parede do murinho do Seu Luiz. Nova machadada, a cabeça grudou no machado e subiu junto. Parecia uma briga, uma batalha que eu tinha visto no livro de latim do Pai, mostrando a luta de Teseu contra o Minotauro. Deu um pouco de desgosto, porque a camisa do Pai ficou feia, parecia um crime de sangue. Teve irmão que não quis ver, ou ficou vendo de longe.
Mas depois, depois mesmo, Vó fez miolo cozido, temperado com limão, comemos no arroz, gostoso mesmo. Na janta fez a língua, foi outro trabalhão barulhento, ela teve que bater a língua na pedra do tanque, para soltar a pele que recobre. No fim, cozida e temperada no molho de tomate da horta, nossa, ficou muito molinha, igual sopa de músculo. Acho que ninguém quis comer os olhos do boi. Eu não quis não.O Pai foi um caçador antigo, com armas cortantes e sanguinárias, eu imaginei.
Durou vários anos a caveira do boi fincada no mourão mais alto da horta. Alguém achava que ia espantar os pardais que queriam comer as mudinhas. Parece que não adiantou. Os passarinhos sentavam no chifre do bicho. Nós é que brincávamos de ter medo daqueles buracões dos olhos, e dos chifres revirados, armas de luta. Perdeu para o nosso Pai.
Não gostava de subir nas árvores o nosso Pai. Mas às vezes subia no pé de abacate, para estender um compridíssimo arame que terminava num bambu em cima do telhado, descendo pelas telhas e pelo forro, para chegar até o rádio RCA, para servir de antena. E servia bem. Pai sintonizava em estações de outros países, às vezes. Ensinou a gente a gostar de música clássica. Eu gostava de olhar as lampadinhas acesas dentro do rádio, eram as válvulas. Pai estendeu um fio elétrico de uma tomada até o rádio, com um soquete no meio. No soquete, uma lâmpada fraquinha, que acendia em certos momentos.
Papai ajudava a missa dos padres, no tempo em que a missa era inteirinha rezada em latim. Nós fomos crescendo e ele foi nos ensinando também. O Carlos, o Pedro, começaram a ajudar missa. Depois o Zaga e eu. Rezando em latim. Sabendo a hora de subir ao altar, pegar a estante com o missal e levar para o outro lado. Sabendo o momento certo de ir buscar na credência as galhetas com água e com vinho para despejar no cálice que o padre nos apresentava. Fazendo tilintar a campainha nos sagrados instantes da consagração. Um ritual belíssimo. E usando as batinas e as sobrepelizes. O Bosco cresceu, ensinamos para ele também. Mas isto já foi quando o mundo estava diferente.
Pai que tinha a chave da igreja, abria cedo para trocar o azeite da lâmpada do Santíssimo, eu ia com ele. Dias certos da semana, chegava Seu Machadinho para varrer com a vassoura de pelo. Tempo de céu azul, eu ia andar lá fora, dando a volta na igreja, pisando nos quadrados de cimento junto à parede branca. Andorinhas mortas eu achava, pretinhas, azuladas até, peito branquinho. Pai explicava, elas mergulhando na velocidade para pegar bichinho, chocavam com a parede branca, não percebiam a distância. Às vezes, Pai era chamado em casa para abrir a igreja: “Seu Francisco, Seu Francisco!”. É que tinha algum bebê com sapinho, vinha a mãezinha lá da Campineira, da Figueira, da Vila Prata, vinha de longe, trazendo a criança, para o Pai pegar a chave do sacrário e passar na boquinha para sarar. Pai atendia na hora, fazia isso, depois falava para a mãe da criancinha: “Mas agora vai no Seu Salgado, na farmácia, ele tem remedinho bom!”. Seu Salgado era o marido da minha professora do primeiro ano, Dona Maria Amélia.
A Mãe ficou sabendo que o Padre Donizete Tavares de Lima estava fazendo milagres em Tambaú. O rádio falava muito nisso, o Padre era devoto de Nossa Senhora Aparecida. Toda tarde as pessoas se juntavam em volta do rádio para ouvir a bênção do Padre Donizete. A Mãe colocava diante do rádio um copo de água, que virava água benta de Nossa Senhora Aparecida. Cada um bebia um golinho. Então a mãe pediu para o Pai escrever uma carta para o Padre Donizete, pedindo bênção e graças para a família e algumas graças especiais. Pedindo que o Pai fosse curado das convulsões, que sarassem todos da casa, a Vó tinha um antigo problema urinário, que ficassem curados de vez os pulmões do Carlinhos e da Ana Clara e que fosse curado o pezinho torto do Zaga. Mãe estava ditando isso e o Pai escrevendo. Daí o Pai falou: "É o direito ou o esquerdo o pezinho?". Estávamos todos nós na cama de Pai e Mãe, prestando atenção. Então o Pai catou o pezinho doente do Zaga e deu beijo estalado, falou: "Ah, é o pezinho esquerdo do filhinho!". E acrescentou mais essa linha na carta para o milagroso Padre Donizete. E levou a carta no Chapeiro para ir para o Correio de Pinda. Quem levava para Pinda no dia seguinte era o Carlinho.
Semana depois, Pai chegou em casa contente e nos chamou para mostrar. Tinha ganhado do engenheiro uma bonita muda de jabuticaba. Já grandinha. Todos falavam que ia levar muito tempo para frutificar. Mas Pai falou: "Não!, vou caprichar nessa mudinha". Fomos com ele até quase o fundo do quintal, mais ou menos na direção do fim do quintal do Seu Eurico. Pai fez um buraco meio fundo, fomos buscar esterco das galinhas, é o melhor que tem. Achamos ainda um pouco de esterco de boi na horta. Vai tudo para o buraco, misturado com folhas secas, ficou uma terra gorda. O Pai plantou a muda de jabuticabeira, e molhou muito, vários regadores, colaboramos com viagens do regadorzinho pequeno. Agora, era esperar para ver se brotavam folhinhas novas na promissora arvorezinha.
Tempo de frio, Pai e Mãe varrendo o quintal, a parte de chão batido perto da varanda do tanque, ventava, caía galhinho seco da ameixeira, vinham voando folhas da laranjeira, amarelas, eu sentado no toco da Vó, sol fraquinho. Mãe perguntava: “Mas Quito, por que será que nesse tempo fica caindo tanto galho seco, folha seca...?”. E o Pai, com vassouradas curtas para não levantar poeira, ia falando: “É que vai chegar a primavera, Nega, começa a chover, as plantas vão se encher de folha nova, galho novo, tem que ter esses ventos de agora pra fazer essa limpa, arrancar o que está seco, galho, folha velha, abrir espaço...”. E Mãe comentava: “Nossa, Deus faz tudo certinho, né!”.
O Pai começou a chorar na mesa e foi para o quarto, tapou a cabeça com os braços. Mãe foi falar com ele, nós crianças não tivemos coragem de perguntar. O Carlinho quando chegou do escritório falou com a Mãe o que estava acontecendo. Foi conversar com o Pai. Sentou na cama dele, ficou um tempão lá. Saiu quieto, o Carlinho. No dia seguinte, veio o Dr. Caio, falou com o Pai, escutou o coração dele, deu tapinhas na barriga para saber de gases, baixou as pálpebras para ver a cor dos olhos, pediu para Pai mostrar a língua. Conversou com a Mãe e no dia seguinte a ambulância levou o Pai para a Santa Casa. A Mãe foi junto. Uma semana, duas semanas. Ficamos por conta da Vó e da Ana Clara. Carlinho era o mais velho, mas trabalhava no escritório, vinha almoçar, o almoço tinha que estar pronto, ele logo voltava para o serviço. A casa ficou chata, quieta. O Pedro estava no ginásio, ia todo dia para Pinda, no ônibus do Seu Ciro. O Zaga estudava no primário, à tarde. Eu estudava no segundo ano, de manhã. Bosco ainda não estudava.
O Carlinhos quase toda tarde precisava levar e buscar correspondência da Companhia na cidade, passar nos bancos, pagar promissórias da Companhia, fazer pequenas compras para o escritório, resolver assuntos na Casa da Lavoura, coisas assim. Às vezes ele me levava, eu estudava de manhã. Eu gostava muito. Entrava com ele pelos bancos, a coletoria estadual, a federal, só assistindo as conversas dele com os funcionários. Depois do serviço feito, ainda demorava para o horário do ônibus voltar, a gente saía passeando por Pinda. Eu gostava quando ele falava: Vamos no São Benedito! Era longe. Chegava lá, um largo imenso, descampado, nenhuma árvore, um terreirão de terra batida, areia, um bom buraco no meio, para enfiar o mastro principal do circo. Era lá que se armava circo. Do outro lado, a igreja. Não tinha muito que fazer por ali. Tinha a casa do padrinho do Zaga, o Seu João Caetano, músico da banda e policial da Guarda Civil. Casado com a Dona Aparecida.
Aí um dia, o Carlinho falou: Vamos visitar o Pai na Santa Casa! E fomos. A Santa Casa ficava quase no meio de uma fazenda. Tinha vacas de leite, árvores de frutas. Entramos, fomos para o quarto onde estavam o Pai e a Mãe. Era uma parte da Santa Casa em que as paredes eram de tábua. O Pai deitado numa cama, a Mãe sentada na outra. Ficaram contentes com nossa visita, conversaram, contei coisas da escola, lições da Professora Dona Célia, que estava me ensinando a gostar de ler. Chegou a hora de sair, era quatro horas, o ônibus dos Valentini não esperava. Papai me chamou para perto da cama, me puxou de leve, me beijou no rosto, estranhei a barba meio pontuda, pedi a bença, falei tchau, fomos saindo, saindo, saímos. Voltamos para a casa, que estava sem pai nem mãe.
Três dias depois, eu e o Bosco estávamos no quintal brincando com terra, parou um carro azul na porta. Era o Tio Gordo, o Jota Marcondes, avisando que o Pai tinha morrido na Santa Casa, que precisava buscar o CORPO. Ficamos certamente com as maiores caras de bobos da nossa vida. Não sei quem, alguém foi tomando decisões, logo depois estávamos todos dentro da ambulância, tinha que passar na escola para pegar o Zaga, o Pedro já estava com a gente, já tinha voltado do ginásio. Todos choravam. Zaga veio, entrou, muito vermelho, a gente, chorando, falava assim: Não chora Zaga.
Foi tudo muito triste e assustador. A vida nossa ficou muito diferente. O Carlinhos já trabalhava no escritório fazia dois anos. A Ana Clara, com quinze anos, começou a trabalhar na farmácia, para ajudar em casa. Dividimos os serviços de casa, para não pesar muito para ninguém. Mamãe organizou rodízios semanais envolvendo todos os filhos e filhas, menos quem trabalhava fora, para cuidar de tudo na casa. Limpeza, lavagem de roupa, que a Vozinha estava cansada, lidar com o fogão, fazer comida, tratar dos bichos, cuidar do quintal, refazer a horta, que tinha ficado abandonada, reforçar as cercas, já bem deterioradas.
O pé de jabuticaba, coitado do pai, não ficou nunca sabendo. Dois anos depois começou a frutificar. Mas não nasceram jabuticabas. Nasceram umas frutas maiorezinhas, amarelas, meio cor de laranja. Azedas se verdolengas, mas docinhas se bem maduras. Fizemos muito suco com essas frutas deliciosas. Eram uvaias. Viu, Pai?
Setenta anos depois eu contei para o Zaga, que já estava velhinho que nem eu, contei para ele, porque ele não lembrava, contei do Pai escrevendo a carta para o Padre Donizete. Contei que ele parou a carta para beijar o pezinho do Zaga. O Zaga não sabia disso, não lembrava, foi responder e engasgou, depois falou alguma coisa mais ou menos assim: “Mais foi? Foi isso? Deus, o Pai? Paulo, eu não sabia...que bom que você contou isso...” Parece que lá longe, em Limeira, do outro lado do telefonema, um velhinho estava querendo chorar. Não sei. Do lado de cá eu sei que tinha outro velhinho já engolindo a lágrima.
****
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto de Maria Tereza da Silva Marcondes
Nenhum comentário:
Postar um comentário